International Journal of Cinema

ARTIGOS | ESSAYS
A CENSURA

NO CINEMA PORTUGUÊS - ESTUDO DE CASO:
MANUEL GUIMARÃES
de
Leonor Areal
A CENSURA NO CINEMA PORTUGUÊS - ESTUDO DE CASO: MANUEL GUIMARÃES
de Leonor Areal

A obra de Manuel Guimarães permaneceu no esquecimento durante décadas, em resultado de uma má avaliação crítica dos filmes que antes foram mutilados pela censura.
Este foi o ponto de partida para a tentativa de recuperar e entender as intenções do autor antes dos cortes aplicados, trabalho que ainda não está completo e que pretendo prosseguir.

O ideal seria conseguir encontrar os cortes dos filmes, mas, crendo que se tenham perdido definitivamente, o estudo das suas implicações pode passar por um conhecimento mais aprofundado da obra deste autor (agora que está quase toda publicada em DVD) e pela análise dos documentos oficiais da Comissão de Censura.

Os processos da censura não são lineares como parecem. Apesar de tudo, houve filmes que eram contundentes e provocadores, mas conseguiam negociar com os censores os limites do permitido. Esse estudo é o que estou fazendo actualmente.

Começam a surgir vários textos e estudos sobre a censura aos espectáculos durante o Estado Novo, entre os quais destaco o trabalho em curso do projecto de investigação “Censura e mecanismos de controlo da informação” do CIMJ-FCSH (apoiado pela FCT).

A tendência desta área de investigação, na minha óptica, vai no sentido de perceber que os mecanismos de censura não são de todo apanágio dos regimes autoritários, mas existem igualmente nos regimes chamados democráticos e actuam em força sobretudo a nível da imprensa e demais média, inclusive na internet.

Esse foi o meu espanto desde que iniciei esta pesquisa que pretendia ser histórica, mas que afinal é mais que actual. Em particular, assinale-se que no ano de 2012 assistimos a um corte de 100% nas verbas do cinema, o que poderá resultar num “ano zero” como o de 1955 (quando nenhum filme português foi produzido). O estrangulamento financeiro também é uma forma de censura.

Está na altura de fazer jus à obra deste autor tão esquecido - Manuel Guimarães, o nosso único cineasta neo-realista - e de comemorar condignamente o centenário do seu nascimento em 2015.

Abstract

Censorship of neo-realist Portuguese movies.
During the period of Estado Novo, the dictatorship ruled by Salazar, every film had to undergo the Censorship Committee’s avail. They would approve, cut or forbid its screening. Censorship towards Portuguese films was even harder than to foreign films. Many directors were censored, but the most sacrificed was Manuel Guimarães, Portugal’s only neo-realist filmmaker.
The Censorship Committee cut every small detail and applied strict and random moral criteria: without any written definition in the law, then subjected to changes, adaptations and reinterpretations, depending on subjective judgment. This menace would reinforce the fear of being censored and confined our cinema to remain less than mediocre, as Luís de Pina said: «it created the fear of approaching issues more than in a superficial, documental and conventional way».
To fully understand the Committee’s scope and criteria, we currently study the minutes where their members discuss and write down their arguments. But it’s not sufficient, as many cuts were ordered informally and no remains subsist of the cut film. Thus we have to compare the script with the film itself, in order to understand what was actually forbidden. I will present the case study of 3 censored films of Manuel Guimarães: Nazaré (1952), Vidas sem Rumo (1956) and O Trigo e o Joio (1965).

Keywords: Censorship, Portuguese Cinema, Neo-realism, Manuel Guimarães

Introdução

Durante o Estado Novo todos os filmes a exibir tinham que ser vistos pela Comissão de Censura que autorizava, cortava ou proibia a sua projecção. No caso do cinema nacional, a tesoura dos censores era mais severa ainda do que com os filmes estrangeiros. Muitos autores foram sacrificados, mas o que mais cortes sofreu terá sido Manuel Guimarães, aquele que foi o nosso único cineasta neo-realista.

Os filmes portugueses (até 1957) eram sujeitos a censura prévia ainda na forma de argumento planificado, que a censura aprovava ou corrigia, dando autorização para a sua produção. Após concluído, o filme era de novo sujeito à Censura que podia ordenar cortes ou proibição. A Censura ao cinema cortava todos os pequenos atrevimentos, o que naturalmente alimentava a precaução timorata dos realizadores e os remetia a um conformismo que - nos critérios coetâneos como nos de hoje - os confina a uma mediocridade menos que aceitável e clamorosa.

A censura era sobretudo moralista acerca do modelo de família, dos comportamentos condenáveis (adultério, etc.), da religião, de representações sensuais do corpo, etc. Também eram cortadas referências a realidades sociais degradadas. Não mostrar bairros de lata era um preceito da censura prévia dos jornais - por causa dos estrangeiros, dizia-se1. Os comentários feitos nos relatórios de censura revelam intransigências que vão bastante além daquilo que a lei previa, baseando-se também em convicções pessoais dos censores2.

A censura omnipresente conduzia os autores, na imprensa e na literatura, a uma forma de expressão críptica que dizia nas entrelinhas, ou seja, alusiva e metaforicamente, o que se não podia dizer abertamente - todo um treino, um jogo literário de insinuações que se tornou constitutivo de uma certa forma de pensar. Também no cinema, a elipse serviu para dizer o não-dito; esse foi o subterfúgio que a geração de 60 usou, com o risco de ficar pela «falsa exposição das questões», como escreveu Luís de Pina:

«Claro que a censura não impede a formação de talentos nem a sua ausência o estimula, mas a verdade é que a criação cinematográfica sofre com a proibição e aprende uma linguagem de alusão, de subentendido, de entrelinha, de meia-palavra, ficando sempre pela falsa exposição das questões. Cria também - e entre nós criou - o medo de abordar as questões, ficando-se pelo superficial, pelo documental, pelo convencional»3.

Mas discordo de Pina quando acha «claro» que a censura não prejudica a emergência de gente talentosa, o que a realidade claramente nega. Basta pensar em como Manoel de Oliveira esteve três décadas quase remetido ao silêncio e sem poder realizar mais do que curtas-metragens e documentários. E não foi o único. É evidente que a censura impediu a manifestação do seu talento.

É o caso também de Manuel Guimarães, cuja obra se afirma perante dificuldades concretas - a penúria financeira e os cortes da censura - num contexto onde está fora de possibilidade a expressão autêntica de uma visão antagonista da sociedade. Assim, apesar da sua resistência ideológica, está sempre cautelosamente omissa dos seus filmes qualquer relação com a oposição política (clandestina) ao regime ditatorial. O seu primeiro filme, Saltimbancos (1951), foi visto, à época, como um acto de coragem e como a afirmação do neo-realismo no cinema português. Alguns beijos foram vistos pela censura como excessivos, mas não cortados, e o filme conclui-se sem o habitual final casamenteiro nem muito menos feliz.

Os seus filmes seguintes não tiveram a mesma sorte e foram três deles severamente cortados. Como muitos dos cortes eram ordenados oralmente, não restam deles vestígios nem escritos nem em película. Assim, para percebermos os critérios da censura, temos que tentar fazer a comparação entre os guiões planificados e o filme e saber os pedaços que ficaram a faltar.

Nazaré

O segundo filme de Guimarães, Nazaré (1952), integra-se numa linhagem de filmes situados na Nazaré e outras praias atlânticas, mas apresentando uma visão desmistificadora da vida dos pescadores, encarnada aqui em anti-heróis que subvertem a anterior visão mítica do seu sacrifício. A recepção crítica ao filme foi também de aplauso, apesar de os cortes aplicados pela Censura terem provocado lacunas narrativas que o tornam um objecto mais frágil.

Nazaré dá uma visão neo-realista da vida dos pescadores, não tão subtil, porém, que não fosse detectada pela censura oficial e fortemente amputada; resultando daí um filme que, na sua versão autorizada, apresenta fragilidades de construção, e que só uma leitura do guião planificado comparado com o filme permite perceber no conjunto4 . Um dos aspectos mais intrigantes destes cortes da censura é terem sido retiradas a maior parte das referências à pesca de longo curso do bacalhau, no guião mostrada como último recurso de sobrevivência dos pescadores, incapazes de viver na incerteza da pesca costeira - como se só isso fosse - ou porque intencionalmente era - uma denúncia da pobreza por dificuldade de sobrevivência da pesca costeira.

Sem fugir aos clichés da ilustração dos costumes populares, que os bailaricos testemunham, Guimarães procura igualmente uma dimensão épica na glorificação da coragem dos pescadores. Mas em paralelo com a assunção de um destino trágico, Manuel Guimarães expõe de forma mais realista a conflituosidade do indivíduo com o meio. Assim se salientam os problemas interiores do protagonista, António (Virgílio Teixeira), um pescador que ganha medo ao mar e se embebeda. Sua jovem mulher, Maria da Nazaré (Helga Liné), aguenta pacientemente a situação, numa construção dramática com poucos diálogos. A narrativa aparenta, porém, várias lacunas a nível das interacções familiares e da psicologia do protagonista. Inexplicavelmente, é esta construção psicológica que parece falhar.

Ora, conhecendo nós a mestria narrativa de Manuel Guimarães no seu primeiro filme, e sabendo que é seu argumentista Alves Redol, o celebrado romancista que iniciou o movimento literário do neo-realismo, temos o dever de duvidar da origem dessas lacunas, que presumivelmente serão atribuíveis aos «muitos cortes da censura»5.

Serão esses cortes que não nos permitem fazer uma avaliação correcta da coesão narrativa?

Sabendo-se que o filme teve muitos cortes de censura e também que Manuel Guimarães teve que o alongar para que ficasse com o tempo mínimo para apresentação em sala6, podemos suspeitar que as falhas de ritmo e as omissões se expliquem por essas mutilações à obra. A consulta do guião planificado do filme7 permitiu-me confrontá-lo, ainda que imperfeitamente, com a minha mémoria do visionamento em sala. Percebi então que as lacunas sentidas na construção mais espessa das personagens, que me pareceram demasiado esquemáticas e sucintas, de facto correspondem ao que está no guião; não foi portanto aí, na relação do casal protagonista que o filme foi diminuído.

Verifiquei depois que as cenas cortadas são essencialmente aquelas em que têm protagonismo o gago escorraçado, os bêbedos e os miúdos ladrões de peixe, ou seja, aqueles cujo comportamento «marginal» terá suscitado a reprovação posterior da censura, visto que não o fez na aprovação prévia, nem levantou qualquer objecção8. Essas cenas de conteúdo social amplificariam o filme e dar-lhe-iam uma dimensão de fresco social, onde os mais miseráveis e excluídos encontram representação. Foi, portanto, essa exclusão a posteriori dos excluídos que nos faz sentir que a família protagonista tem pouco desenvolvimento, pouca profundidade, quando afinal se pretendia dar-lhe um peso semelhante aos demais personagens, numa lógica de drama colectivo.

Outras cenas que foram excluídas da versão final: aquela em que o Mar Ruim diz que nessa noite virá peixe do Algarve e que precisa de Maria da Nazaré, preparando o assédio que há-de fazer-lhe; uma pequena cena em que os pescadores de dois barcos entram em despique e onde se levantam os remos em ameaça; a cena seguinte (cena 29) onde os dois irmãos se falam com dureza, indiciando um conflito; a cena 30 em que um dos pescadores fala em partir para a pesca do bacalhau. Outra conversa que também está ausente da versão final (cena 92) é quando os velhos-de-terra se ressentem do pouco valor que António lhes dá, eles que iam ao mar «no tempo em que havia galeões e não eram os motores, mas os braços que nos levavam pelo mar fora»; diálogo que, presumo, levará o herói a reconsiderar a sua posição.

Outra divergência importante é o final. Na versão cortada, após o nascimento na praia do filho de António, o tio ergue o recém-nascido frente ao sol poente, transformando esta conclusão numa espécie de sacrifício do bebé ao futuro selvagem do mar, como seu pai, avô e antepassados, numa espécie de predestinação moralista e épica. Mas, no guião, a seguir a esta esta cena que se tornou final, havia ainda duas cenas de epílogo. Na cena 103, Maria da Nazaré com o filho ao colo, Manuel e Ti’ Isaura, todos de negro, na praia enevoada avistam Estrela que grita e chama «Tonho!» - e percebemos que a cunhada de António enlouqueceu com a perda do homem amado. Na derradeira cena 104, na praia agora ensolarada, o filho de António já com dois anos brinca na areia enquanto as duas irmãs conversam. Diz Estrela: «Ficaste com ele. É o teu sangue»; ao que a gentil Maria da Nazaré responde: «E o teu coração, Estrela. Ele também te pertence».

Este diálogo ocorre enquanto Manuel e os seus homens saltam para o barco e o filme se termina por um plano idêntico àquele com que se iniciara. E com esta conversa entre duas irmãs que partilham a criança do homem que ambas amavam, partilha talvez estranha para a moral da época, razão suposta para a exclusão destas cenas, o filme acabaria com uma recuperação sui generis do desgosto, uma resignação feita de amor e loucura mansa.

Percebemos que a sua mensagem final não era a do sacrifício dos homens desde bebés, mas a capacidade de resistir das mulheres. Esse conteúdo expressa-se, na versão conhecida, apenas através de uma montagem eisensteiniana dos gritos das mulheres e dos movimentos colectivos, um remendo provavelmente, pois não aparece na planificação.

As omissões permitem-nos reformular, ainda que precariamente, uma leitura do filme onde os aspectos sociais se tornam mais significativos do que a primeira abordagem, convencional, nos levara a considerar. Compreendemos que a versão original desviava a nossa atenção dos protagonistas para uma condição social subjacente que era, sim, a temática central do filme. O filme, afinal, procurava afastar-se do melodrama simples e dar uma visão mais articulada de todos os actores sociais, os habitantes da vila, dos quais destacariam com suficiente pertinência - a suficiente para ter sido censurada - aqueles que as desigualdades sociais e as discriminações já punham de parte. Essa dimensão social do argumento, claramente comprometida com uma visão política, é que a censura terá a posteriori elidido, reduzindo o filme a pouco mais que uma história familiar que não se desenvolve por si, por não ser essa a história principal.

Em conclusão, foi a consulta do argumento planificado que me permitiu perceber que o filme imaginado (e filmado efectivamente, suponho) era uma espécie de anti-epopeia, um filme anti-heróico, onde - desde o personagem central aos miúdos da praia, passando pelos pescadores pobres e bêbedos - todos compunham uma realidade colectiva, esfomeada, sobrevivencial, distante do mito presente em outros filmes que tornaram a Nazaré uma espécie de emblema nacional e turístico.

Vidas sem Rumo

O filme seguinte, Vidas sem Rumo (1952-56), também se situa em ambiente portuário, em Lisboa. Manuel Guimarães retoma a figura do contrabandista, construindo uma narrativa mais psicológica e com ambiente expressionista aparentado de film noir, mas praticamente excluindo do drama as forças policiais. Em vez da sanção oficial, a culpa é assumida como dilema do protagonista com reflexos na moralidade estrita dos vagabundos que o vigiam, numa substituição da figura da autoridade pela censura moral.

Esta longa-metragem de Manuel Guimarães, iniciada em 1952 imediatamente a seguir a Nazaré, só conseguiu ser concluída e estreada em 1956 - depois de proibida pela censura, o que levou o próprio realizador a cortar quase metade da versão original, a reconstituir a intriga e a fazer uma refilmagem para colmatar as lacunas abertas. Apesar disso, o filme apresenta grande consistência narrativa e Manuel Guimarães terá conseguido disfarçar ou sobreviver a essa grossa amputação9.

Tomando a obra como o filme possível, e aceitando-o na sua inteireza e coerência interna, importa assinalar desde já a sua primeira característica estrutural: a acção é introduzida pela voz de um narrador, o jornalista que se apresenta diante da câmara e se dirige, olhos nos olhos, ao espectador, num curioso procedimento de interpelação. Ainda hoje invulgar em cinema, este dispositivo cria uma inevitável estranheza, apresentando-se como encenação de uma espécie de ficção documental. O jornalista mostra-nos uma notícia impressa - «Vítima de acidente numa passagem de nível» - e começa a contar como, apenas 48 horas antes, se deparara com as personagens desta história que iremos seguir, junto com ele, discreto observador que por vezes completa a acção com alguma informação.

Inicia-se então o flashback contínuo que nos conduzirá a este «drama de vielas escuras»10 . O que se segue é como um segundo filme, dissonante do tom daquela introdução, uma história dramática, filmada em ambientes nocturnos de iluminação expressionista, tendo como personagens centrais vagabundos, pedintes e outros marginais. Imediato e tentador é conjecturar que a figura deste narrador, que se faz mediador moral de uma história de desgraça, seja exactamente o expediente narrativo encontrado pelo realizador para solucionar os cortes da censura e salvar a coerência do seu filme; esse palpite, um tanto óbvio, e que depois pude confirmar, parece-me que lhe introduz um elemento de modernidade que o torna um objecto talvez mais interessante.

A partir desta apresentação, estabelece-se um pacto com o espectador, a quem se pede, por um lado, que aceite uma interpelação directa inabitual em ficção cinematográfica e, por outro lado, que reconheça igualmente o contrato de ficção posto na fantasia da história, na sua poeticidade. Porém, mais do que isto, o realizador procura defender uma ideia, aquela que representa o seu propósito mais ideológico: o facto de esta história se referir à vida real, validada através de uma notícia de jornal. Nessa assunção e no gesto de o apontar com clareza, embora ressalvando a pintura involuntária de que a ficção se possa colorir, está definido um compromisso com a realidade exterior, ou anterior, de que se fala.

E está também implicada a vontade de devolver ao real extradiegético uma história que dele provém e que atravessa transitoriamente o espaço do ecrã para não sucumbir no ainda mais provisório lugar de fait-divers que a realidade que conferiu. Esta reflexividade, original na época, torna o trabalho de Manuel Guimarães especialmente latente de implicações acerca da sua própria dificuldade de existir. Manuel Guimarães alude, portanto, indirectamente ao processo de amputação que infligiu ao seu próprio filme, projectando-se na figura sentida do poeta-jornalista que diz guardar o segredo oculto das vidas tristes que o jornal não conta.

Essa história que se esconde em três linhas de uma menção jornalística é uma história de gente pobre e sem esperança, personagens que não correspondem em nada aos clichés do retrato de cidade activa e trabalhadora que as banais imagens iniciais nos deram. Vidas Sem Rumo intenta um retrato aprofundado de uma população urbana até então quase ausente do cinema - pela escolha das personagens mais marginais de entre os marginais: vadios, pedintes, estivadores, aleijados, velhos, negros, contrabandistas, prostitutas, varinas, etc.

Na escolha de personagens marginais revela-se um parti-pris, um interesse declarado pelo mundo dos miseráveis, os «injustiçados» da vida, poderia dizer-se com a ressalva de que neste olhar não há qualquer visão justiceira nem sequer uma acusação implícita à injustiça social. O filme - através do olhar compassivo do narrador, alterego do olhar do realizador - constata, observa, compreende, mas não tira conclusões. O narrador putativo, e com ele o espectador, é levado a identificar-se com os sofrimentos das personagens e com a inevitabilidade da sua condição existencial.

São muitas as personagens que compõem este retrato social; fazendo-se espelho umas das outras na sua desgraça comum, constituem uma micro-sociedade de excluídos e nas suas facetas diversas compõem um herói colectivo. Este grupo social não tem sequer relações com outras classes sociais - característica persistente de quase todos os filmes desta época. Manuel Guimarães isola os personagens do resto do mundo e constrói uma espécie de universo fechado, com referentes que não demonstram, ou elidem, qualquer conflito social. Mas esta ausência de hierarquias, ou da representação dos poderes, poderá ser lida como uma forma de afirmação anti-poder.

A solidez narrativa - admirável para uma obra que foi tão cortada e reconstruída - faz-nos conjecturar como seria a obra original que não é possível recuperar11 . Será este filme uma pobre amostra das capacidades do seu autor, ou a pálida imagem da mensagem humanística e ideológica nele originalmente contida?

Apesar de bem recebido na altura12, depois disso o filme foi pouco visto. Ao longo de 50 anos, foi visto meia dúzia de vezes e esta ausência dos ecrãs fez dele um filme quase desconhecido. A observação de Luís de Pina de que, após os cortes da censura, o filme ficou «irreconhecível»13 marcou a sua fama de filme falhado, que, hoje, me parece infundada.

Foi esta perplexidade inquietante - a de que o filme mais perfeito desta década de decadência, sujeito a uma censura pesada, apesar de tudo sobrevive, entre os demais, como obra de destaque e qualidades excepcionais neste período - que me levou a analisar em pormenor a planificação original - datada de 1952 e na versão original aprovada pela censura14 - optando aqui por um estudo filológico e extra-filmico que se desvia do meu propósito de princípio de me ater ao estudo da obra per se; mas que se justifica de igual modo, visto que a obra em si já estava semi-escrita sob a forma de guião.

Ao ler a planificação original (a que foi visada pela censura), constatei então as principais diferenças entre esta e a versão final do filme, concluído quatro anos mais tarde, em 1956. Na versão original15, existia já um narrador homodiegético, não o jornalista, mas uma das personagens da história, Vossa Senhoria, que além de relator dos acontecimentos assumia o papel de comentador ou consciência moral. A interpelação ao espectador estava já presente: Vossa Senhoria, subindo a escadaria que levava ao prédio onde morava numa água-furtada, virava-se para a câmara e apresentava-se a si e aos vizinhos: as duas irmãs, a louca e a perdida, o mudo Pardal, etc. O seu olhar sentimental e poético dominava o retrato verbal e tinha uma função moralista - aspecto que na versão final fica bastante atenuado, traduzido na voz compassiva do jornalista, mas de forma mais desafectada, representado pela distância e pela frieza a que a sua profissão de jornalista o obriga, e que quase coincide com um perfil de detective duro mas sentimental. A versão final é, assim, muito menos patética que a primeira. Menos sentimental nas palavras, mas conservando essencialmente, nas imagens poéticas visuais e humanas, o traço autoral.

No entanto, sabemos que houve de facto problemas com a censura, apesar de o argumento ter passado na censura prévia. Que cenas poderiam ter assustado a censura? Teria o resultado filmado diferido substancialmente do que estava escrito? Seria chocante que o protagonista retirasse a criança à mãe para a abandonar nas mãos dos párias? Aliás, as cenas com a mulher do bebé foram refilmadas com outra actriz (Maria Albergaria, em vez de Sara Vale).

Nas partes conservadas - a maior parte das cenas, aliás, da história de Meia-Lua -encontrei uma grande fidelidade ao guião, apenas com uma excepção mais evidente: quando Marlene se lamenta de não ter direito a ter ciúmes nem amor, ela caía chorando, simplesmente; na versão filmada, é Alfredo que a empurra e ela, já tombada sobre a cama, recebe dele um beijo na boca. Mas não foi, pelos vistos, este tipo de pormenor que se tornou empecilho à projecção pública do filme.

Contudo, há um pormenor alterado da intriga que vem modificar todo o sentido da narrativa e suas pressuposições. É que, na versão escrita, no encontro inicial com a rapariga, Alfredo, por despeito ou raiva, tirava-lhe o bebé e ia abandoná-lo no barco, sem que soubéssemos o que teria acontecido à mulher-mãe. Durante todo o percurso de fuga do protagonista - que se mantém tal e qual na versão final - estaríamos na ignorância dos dilemas do herói. O filme teria perdido a sua carga psicológica e sofreria de uma certa inconsistência narrativa, derivada desses factos omissos. Assim, parece evidente que a versão final parece ter sido melhorada pela mão e vontade consciente do seu realizador, numa reformulação a posteriori que salva a intriga de uma arbitrariedade comportamental que a solução final - refilmada - consegue evitar16.

Outra diferença fundamental em relação ao guião original é que naquele Meia-Lua fugia dos vagabundos perseguidores e, depois de escapar à ameaça do comboio, trepava por um guindaste acima até já não ter escapatória possível. Encurralado, acabava por se agarrar a uma corda que se rasgava e estatelava-se no chão, onde era rodeado por todos. Antes porém, confessava a paternidade, e pedia «cuidem da menina, digam-lhe quem fui...». Assim mostrava um arrependimento que o redimiria parcialmente, mas deixando-nos ainda na ignorância dos seus motivos íntimos e dos acontecimentos passados com a mulher afogada. Será que essa cena configurava uma espécie de suicídio incompatível com a vigilância moral dos censores? O castigo de si próprio era um final ainda mais trágico, mas também mais difícil de explicar. Na versão final, existe ainda o momento de redenção do personagem - quando pede ao jornalista que olhe pelo filho mas não lhe conte nada do que aconteceu - mas com a cena do guindaste excluída, o herói aparece caído no chão e ensanguentado como tendo sido atingido e projectado pelo comboio, deixando em aberto a dúvida se teria sido suicídio ou acidente.

O final da segunda versão deixa também em aberto a história que só o jornalista consegue reconstituir - mas que para os companheiros de infortúnio suspende a incógnita sobre a intencionalidade do crime do Meia-Lua. Nesta versão, o herói é recuperado a nossos olhos, e em coerência com o seu comportamento de personagem ambígua, nem bom nem mau. De novo, a solução final parece-me mais bem conseguida.

E se a «versão original foi cortada por critérios comerciais e de censura»17, Guimarães conseguiu dar mais consistência à história - refilmando as cenas com a rapariga e introduzindo o jornalista como narrador; este último mantém o espírito compassivo da versão primeira, mas introduz-lhe uma dimensão de análise social no facto de demonstrar como uma história de desventura e marginalidade se resume, na sua tradução oficial jornalística, a um mero fait-divers, mostrando como nos subterrâneos dessa cidade agitada se escondem vidas sem outro rumo que o da exclusão sucessiva de gerações.

Se apresenta uma moralidade mais inclusiva, perde um pendor moralista sobrecarregado que tinha a primeira versão e que é representado por esse personagem, aqui com um papel mais limitado, Vossa Senhoria, o filósofo moralista, que se torna um entre os outros, em vez de narrador intradiegético e interpelador. Contudo é difícil perceber por que foi tirado a este personagem o protagonismo. Se por razões de censura, não descortino quais, a não ser que tivessem sido mandados tantos cortes que retirassem sentido ao personagem. Ou seria por razões comerciais?

Eis como a investigadora, em busca da obra-prima cujas cenas contundentes teriam sido vítimas da tesoura da censura, encontrou afinal uma metamorfose em que, por alegada interposição da censura, a clarividência do realizador corrige o seu próprio trabalho e lhe consegue dar maior unidade, coerência e justificação. É uma descoberta surpreendente, mas ficam ainda por averiguar que razões e que cortes lhe aplicaram os censores, neste que se considera ser o filme mais mutilado pela censura.

O Trigo e o Joio

Em 1965, Manuel Guimarães realiza O Trigo e o Joio, baseado no romance homónimo de Fernando Namora. Tal como nos seus três primeiros filmes da década de 50, não conseguirá livrar-se dos cortes da censura, mas a obra manterá um clima de autenticidade e de sacrifício humano que a torna o primeiro hino ao sofrimento da população alentejana e descrição da sua estrutura social e laboral.

Guimarães consegue reconstituir, quase etnograficamente, um quotidiano de resistência à adversidade, onde se evidenciam os protagonistas mais marginais, os rendeiros pobres, os malteses, os trabalhadores à jorna e sazonais, os capatazes, os ciganos, os feirantes, assim como o lavrador abastado, o autarca e a guarda republicana - inseridos num modo de organização social do trabalho rural, e particularmente descrevendo as migrações sazonais de trabalhadores do norte para ceifar as searas. Podemos considerá-lo o último filme da linha estética neo-realista que caracteriza a obra de Manuel Guimarães.

Tal como nos anteriores, os protagonistas são os marginais da sociedade. Aqui, o protagonista Barbaças (Mário Pereira) é um maltês - espécie de vagabundo que não gosta de trabalhar e preza a sua liberdade, vivendo de pequenos roubos ou biscates avulsos - que inicia o filme a fugir com uma galinha «caçada» que vai assar numa fogueira. Aparece depois o lavrador chamado Loas (Igrejas Caeiro), que vive com a mulher e filha numa courela, e que procura aliciar Barbaças para companheiro e sócio da seara que hão-de cultivar juntos: «Um homem, mesmo um zé-ninguém como nós, pode acrescentar grandes coisas ao mundo. Pois uma seara de trigo não sai das mãos de um homem?». Mas a mulher Joana (Eunice Muñoz) é do norte, sonha com uma horta e desconfia das ambições do marido.

Precisam de uma burra para ajudar na lavoura; mas o Loas também tem «artes de bruxo» e é motivo de chacota na aldeia. Por isso, entrega os 700 escudos de poupanças da família ao Barbaças, que irá à feira comprar a tal burra; chegado à aldeia, este será desencaminhado pelo aldrabão Vieirinha (interpretado pelo escritor Manuel da Fonseca), que o faz gastar o dinheiro em vinho e mulheres.

O maltês mostra-se arrependido e determinado em saldar a dívida para com o amigo. Vai trabalhar na ceifa com os ranchos de trabalhadores. Na terceira parte do filme, o Barbaças devolve os 700 escudos ao Loas, que logo os aplicará na compra de uma burra para puxar o arado e para felicidade da filha. Mas vêm a saber que a burra pertencera a uma leprosa, irmã da mulher que a vendeu. A criança apresenta umas bolhas na barriga e temem que seja lepra. No isolamento e na ignorância em que vivem, Loas decide purificar a terra conforme manda o seu livro de rezas. Convencendo-se de que matou a doença, recusa-se a abater a burra que tanta falta lhe faz para a lavoura. A mulher desespera, pega na caçadeira e mata a burra.

Loas chora de desânimo junto à charrua, mas Barbaças, pegando na enxada, começa a cavar dando o exemplo e conseguindo animar o amigo. O final épico, com as enxadas ritmicamente cavando a terra em contraluz, glorifica o esforço humano e saúda a esperança em forma de cliché. O filme deixa uma inequívoca mensagem de resistência num território de sobrevivência e miséria extremas - como era o Alentejo - cujo modo de produção agrícola é aqui descrito, sem no entanto expor qualquer conflito de natureza ou conotação política.

O que há de peculiar neste filme é não haver nele personagens boas ou más; são todos boas pessoas, apesar dos defeitos, insuficiências e maldades. Nem o vagabundo que pilha galinhas, nem o aldrabão do Vieirinha que não consegue resistir às mulheres, nem o Loas que não é capaz de concretizar os seus sonhos, nem o lavrador autoritário, nenhum deles é caracterizado como tipo social. E esse desacerto em relação aos estereótipos, evitando propositadamente qualquer maniqueísmo melodramático, tem uma intenção e assinala um humanismo particular, quase difícil de explicar, na medida em que todos são melhores personagens do que lhes pediríamos para serem. O idealismo desta visão é difícil de conciliar com a lógica sobrevivencial que marca as suas existências18 . Todas as situações deixam na ambiguidade uma moralidade liberta de critérios convencionados ou expectáveis. E essa ausência de juízos indicia sobretudo uma colocação moral que, além da perplexidade, poderia igualmente suscitar dúvidas acerca das suas intenções. Todavia, há neste filme uma mensagem evidente de redenção humana que a frase do lavrador exprime: «sei o pode um vadio quando quer ser um homem»; mensagem que se pretendia talvez universalista e capaz de suplantar, pela sua bondade ecuménica e pela «lição de regeneração e de fraternidade»19 , uma ideologia de resistência socio-política (latente e quase omissa).

O filme, inserindo-se claramente numa linha estética neo-realista, não procura um confronto com a ideologia estadonovista, a não ser nessa atenção anti-conformista por personagens pobres e marginais, nas quais projecta uma humanidade idealista, uma esperança e uma determinação pelo trabalho que parecem quase demagógicas. Por outro lado, a pobreza é mostrada como uma condição endémica de ignorância e dependência de factores alheios, seja a falta de meios, a falta de braços de trabalho, a maldade de outros homens tão miseráveis quantos estes, a lepra que ninguém sabe tratar, a meteorologia ou a crendice e o paganismo das bruxarias.

Não é portanto ao proprietário das grandes searas que essa pobreza é atribuída. Pelo contrário, o lavrador rico é apresentado como um homem generoso, capaz de oferecer dinheiro, palavras simpáticas e outras benesses aos seus trabalhadores, uma quase espécie de juiz local iluminado - que dá ordens de bom senso à guarda timorata. De facto, como disse Luís de Pina acerca de Guimarães, «a sua ideia de conflito social passa pouco pela luta de classes e mais por uma caracterização verista de ambientes»20.

Porém, a censura não se iludia facilmente e - ciente de que um autor de esquerda teria sempre um outro fito que não a «pura arte» - cortava tudo o que parecesse imoral, e neste filme particularmente - incompreensivelmente até - os censores apuraram-se em cortar o mais possível. Acontece que entre a versão primeira do filme, com 110 minutos, e aquela que se conhece hoje, de 96 minutos, faltam pelo menos 14 minutos cortados pela censura21, que, mais uma vez em prejuízo do seu autor, não nos permitem ter uma percepção da obra na inteireza das suas intenções.

O acesso ao processo de censura do filme - existente no espólio da Inspecção-Geral de Espectáculos22 em que se enquadrava a Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos (CECE)23 - permitiu-me analisar detalhadamente os cortes feitos e os que, não estando assinalados no relatório da censura, são inexistentes da versão conhecida. Uma boa parte do filme - particularmente as cenas e as frases mais fortes - foi eliminada por diversas razões: ora por indicação escrita da Comissão; ora por um acto de voluntarismo manifestado pelo próprio realizador, deveras incompreensível (a não ser porque tenha sofrido alguma pressão); ora sugeridos pela empresa produtora que pede para baixar a classificação etária de 17 para 12 anos, e depois volta atrás por haver protestos do público; ora ainda pela omissão de outras partes significativas cuja exclusão não está registada por escrito. Todo este processo deixa muitas incógnitas por esclarecer, e apenas uma certeza: a de que o filme que hoje podemos ver é uma versão estropiada que não faz justiça aos seus autores24.

Dos 10 cortes indicados pela Comissão, a empresa distribuidora Rivus apresentou um primeiro recurso:

«...visto muitos desses cortes mutilarem gravemente a narrativa, o seu significado humano e poético, a sua coerência psicológica, e ainda os valores plásticos. Cremos, aliás - e é essa convicção que nos encoraja a este recurso -, que nem sempre certas passagens do filme foram interpretadas em conformidade com as intenções do realizador. Essa inadequada interpretação mais parece resultante de uma prévia desconfiança, que sempre conduz à pesquisa de propósitos que não existem e, seguidamente, ao convencimento de que a obra apreciada os confirmou».

A Comissão levanta 5 cortes, os mais pequenos. As cenas efectivamente cortadas pela censura ficaram sendo as seguintes:

  • 1) a cena do encontro de Barbaças com a prostituta no pinhal, que foi reduzida, eliminando as imagens a partir do plano geral em que caem no chão;
  • 2) o corte da frase dita por um ceifeiro acerca da propriedade: «Bem tratada, enchia uma dúzia de famílias», que terá sido entendida como uma alusão política;
  • 3) um fragmento de cena com Maldonado, o lavrador rico, em que ele desdenha de um trabalhador dizendo «Achas que eu tenho culpa de a tua filha estar doente?»;
  • 4) uma cena inteira entre Maldonado e Barbaças, em que o primeiro faz um corvo comer o ratinho de estimação do segundo, que depois mata o pássaro com uma fisga;
  • 5) a imagem final do filme em que o Barbaças se atrela à charrua, substituindo a burra morta, e a frase do Loas: «Havemos de fazer grandes coisas, Barbaças! A terra precisa de homens para a trabalhar».

Os motivos dos cortes são relativamente óbvios; o primeiro omitindo as cenas eróticas; os restantes - mesquinhos até - cortando ou pequenas frases consideradas com segundo sentido subversivo, ou as cenas em que o lavrador mostra agressividade e se esboça um conflito que poderia ser lido alegoricamente como conflito de classes. Estes cortes correspondem exactamente às cenas que nos mostrariam alguma conflitualidade, gerando um contraponto com a bondade dos personagens, e dando-nos destes uma imagem não tão idealista como deixei atrás apontado. O Barbaças não seria apenas o ingénuo bondoso, mas mostrar-se-ia capaz de retaliar contra a agressão do lavrador dirigida ao seu animal de estimação; o lavrador não seria apenas o homem que aplicava a justiça benevolamente, mas também aquele capaz de rejeitar pedidos manhosos ou abusivos, como aliás o recurso apresentado tenta justificar:

«Toda a cena se desenrola nesse clima de compreensão e até de humor. Surge, por fim, um camponês, entre lamurioso e quezilento, que provoca a frase do lavrador, frase pela qual se infere que o outro é um maçador, falando sempre a mesma coisa injustificadamente».

O corte final - da imagem do homem atrelado à charrua - compreende-se que tivesse uma leitura metafórica evidente e a frase de exortação que o acompanhava uma também óbvia mensagem de luta política, apesar da argumentação apresentada no recurso:

«Um final, em suma, que pretende ser e é positivo, pois nele apenas se exalta a solidariedade. Um vadio que renuncia à vadiagem para participar dos sonhos que dignificam a vida».

Mas muitos outros cortes aconteceram, o que simplesmente se constata pelo cotejo da lista de diálogos do filme (entregue à Comissão) com a versão final do filme. E estes - para grande espanto nosso - foram a maior parte feitos por vontade do realizador, que os enumera em carta manuscrita dirigida ao Inspector-Chefe dos Espectáculos. Esta carta está datada de um dia após o ofício que levantava alguns dos cortes e mantinha os atrás referidos. Manuel Guimarães desculpa-se por ter estado ausente e justifica-se de ter pedido uma credencial na Tóbis que lhe permitiu levantar a cópia entregue na Inspecção para lhe fazer «algumas correcções puramente de ordem técnica e narrativa». Esta explicação serve as aparências e é obviamente falsa, já que os cortes feitos demonstram uma intencionalidade diferente, escondendo provavelmente uma coacção pessoal e a possibilidade concedida de ser o próprio autor a reformular o filme.

Reforçando textualmente o «propósito de honestidade que presidiu a esta minha atitude» - a «honestidade» parece aqui um puro acto de retractação - Guimarães diz ter cortado 5 cenas. O que se percebe, nestes cortes, é a tentativa de limpar do filme as referências mais desenvolvidas em relação ao erotismo de Vieirinha e às bruxarias do Loas, que, embora não fundamentais em relação ao desenvolvimento da intriga, o eram enquanto retrato do segundo personagem, que assim sai bastante empobrecido, perdendo o seu traço de aldrabão e guardando apenas a bondade sonhadora. E, no entanto, os motivos de bruxaria mantêm-se no filme, com grande evidência na cena em que o Vieirinha pede ajuda ao Loas para seduzir uma mulher, ou quando o Loas vai à aldeia e a população troça dele, ou ainda quando consulta o livro de rezas e faz a defumação da burra e da filha, num ritual perfeitamente pagão.

Note-se porém que, nos cortes levantados pela censura, se incluía o corte de duas pequenas frases onde os censores encontrariam vagos sentidos ocultos - «lepra na courela» e «É mesmo preciso dar um jeito a isto tudo» (pag. 25) - e partes fundamentais do ritual de purificação, em cuja página 26 se podem ler anotações dos censores: «Nada de rezas». Podemos por isso supôr que Manuel Guimarães, tentando salvar alguns destes cortes arbitrários, tenha cedido a pressões da censura e aceitado reduzir a presença das cenas de bruxaria - e outras menos politicamente correctas - em troca da inteireza e pertinência da cena da defumação, sem a qual todo o desfecho do filme - com a mulher matando a burra e os homens retomando o trabalho - seria desvirtuado.

Existem ainda outros pequenos cortes de frases pontuais, que não caberá aqui indicar, mas que mostram o quão sacrificado foi o sentido do filme, o seu ritmo, a sua subtileza. Acima de tudo - e por razões caricatas - as personagens perderam toda a sua ambiguidade25 . O filme ficou efectivamente amputado de algumas das suas cenas mais ricas, cortes que foram impostos não sabemos por que meios informais de pressão e cedências do realizador26.

Assinale-se ainda que este não era de todo um filme contundente, como o alega conscientemente o recurso apresentado:

«As próprias alterações à obra literária em que se baseou, feitas com a íntima colaboração do autor, (...) atestam o objectivo de sempre se orientar o filme para uma exaltação do amor ao trabalho, do milagre da amizade, da fidelidade à terra, sem margens para implicações de carácter social, político ou religioso”. “Mais poderíamos acrescentar. Por exemplo: rememorando, tanto quanto possível dezenas de filmes que correm entre nós e apresentam conflitos semelhantes ou a evidência intencional de antagonismos sociais de que O Trigo e Joio se alheou, somos forçados a deduzir que terá havido para o nosso caso um critério de particular severidade, quando seria de esperar a compreensão a que já nos referimos».

A suspeita de que Guimarães foi alvo de especial de ostracização por parte dos censores do regime reforça-se com a declaração, em acta da Comissão, de ser «necessário tomar providências para que o filme não saia do país».

Conclusão

O estudo de caso destes três filmes ajuda-nos a perceber duas coisas centrais da actuação da censura. A primeira sobre o tipo de conteúdos julgados impróprios ou censuráveis, que não passavam tanto por questões de moral social - modelos familiares ou afins - como passavam sobretudo por uma restrição de palavras e actos que pudessem ser alusivos de intenções políticas, por muitos pequenos e até insignificantes que pudessem ser.

A segunda conclusão prende-se com o funcionamento do processo de censura, onde percebemos que há uma prolongada negociação entre os fazedores do filme e os censores, com correcções e sugestões da iniciativa dos primeiros com vista a satisfazer exigências dos segundos - porém não expressas e sobretudo informais. Além disso percebe-se ainda que existe uma clara perseguição ad hominem e, por extensão, ao grupo ideológico afim, e que se executa vingativamente para além do razoável, como forma de pressão e sanção que já não deve grande coisa a critérios morais ou ideológicos, mas a razões de afirmação e exercício de poder.

Bibliografia

ANTÓNIO, Lauro (1978) - Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Museu República e Resistência, 2001

ANTÓNIO, Lauro - «Manuel Guimarães: dossier», obra dactiloscrita depositada na biblioteca da Cinemateca, s.d.

CUNHA, Paulo - «Nazaré»: Caroline Overhoff Ferreira, ed., O Cinema Português Visto Através dos seus Filmes. Porto, Campo das Letras, 2007.

DUARTE, Fernando - Manuel Guimarães. Santarém: 5º Festival de Cinema, 1975.

MATOS-CRUZ, José de - «Breve Dicionário Tipológico do Cinema»: TORGAL, Luís Reis, ed., O Cinema Sob o Olhar de Salazar. Lisboa: Temas e Debates, 2001.

MATOS-Cruz, José de - O Cais do Olhar: O cinema português de longa-metragem e a ficção muda. Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1999.

PINA, Luís de - A Aventura do Cinema Português. Lisboa, Vega, 1977.

PRÍNCIPE, César - A Censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa, Caminho, 1999.

Note

1Vide César Príncipe, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa: Caminho: 1999.

2Os cortes eram por vezes negociados com o distribuidor mas não se conhecem quase registos escritos. O documentário Alguns Cortes, realizado por Manuel Mozos em 1996 para a Cinemateca Portuguesa, colige e organiza inúmeros pedaços de fita cortados pela censura, revelando os seus critérios multiformes.

3Luís de Pina, A Aventura do Cinema Português. Lisboa: Vega, 1977: 137.

4A versão restaurada - a partir dos cortes da censura encontrados e existentes no ANIM - não repõe mais do que breves cortes e fica longe da obra completa escrita na planificação, que, julgo, poderá estar perdida.

5José de Matos-Cruz, O Cais do Olhar - O cinema português de longa-metragem e a ficção muda. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1999.

6«...depois de concluído o filme, o realizador viu-se obrigado a recorrer às “pontas de montagem” - por ele rejeitadas em princípio - para que o filme pudesse satisfazer o tempo de projecção conveniente» (F. Xavier Pacheco in Jornal de Notícias, 1964; apud António,«Manuel Guimaraes: dossier», obra dactiloscrita depositada na biblioteca da Cinemateca, s. d.).

7Exemplar «visado pela censura» prévia; aprovado pela Comissão de Censura em 2-9-1952; existente na biblioteca da Cinemateca.

8«Em 1953, num ofício enviado pelo SNI ao próprio Presidente do Conselho, José Manuel da Costa, então responsável máximo pelo organismo, resumia em breves palavras a posição do regime (...): “Nem por divertimento nem por obrigação pude ainda ver o filme ‘Nazaré’. A realização é inteiramente de iniciativa particular e tem raízes naquele grupo de ‘intelectuais da miséria’ ao qual nunca são estranhas intenções políticas e sociais em arte e em literatura”. Comissão do Livro Negro sobre o regime fascista, 1980: 167» (A Política de Informação no Regime Fascista. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 1980; apud Paulo Cunha, «Nazaré» in Caroline Overhoff Ferreira (org.), O Cinema Português Visto Através dos seus Filmes. Porto: Campo das Letras, 2007: 86).

9Matos-Cruz (1999) refere: «Uma versão original foi cortada “em 45%” (MG), por critérios comerciais e de censura», mas outras fontes exageram provavelmente os números. Manuel Guimarães em entrevista ao Diário de Lisboa, em 1963 diz: «Acontece que do filme que fiz apenas uns 50 por cento foram apresentados ao público. Muita gente é testemunha disso» (António, ibidem). Outras duas fontes referem 80%. O facto de ter sido o próprio realizador a fazer uma refilmagem, para tentar salvar o filme, aponta para uma proibição liminar anterior, pois creio que nenhum filme se aguentaria com tantos cortes. Entretanto perderam-se num incêncio as partes cortadas do filme: «E hoje nem sequer é possível recuperar e reconstituir o filme, cujas bobines cortadas se perderam depois do incêndio que deflagrou na Tóbis Portuguesa» (Fernando Duarte, Manuel Guimarães. Santarém: 5º Festival de Cinema, 1975: 19). Assim, o que podemos hoje perceber do filme que poderia ter sido é muito pouco. Ignoramos também que «razões comerciais» possam ter sido as que Matos-Cruz refere, mas podemos admitir que englobam a necessidade de concluir o filme para não dar prejuízo, como explica Manuel Guimarães. «Foi mal apresentado, mal compreendido e tive de consentir - ao fim de 4 anos da sua realização - a sua estreia porque de outro modo seria a ruína dos seus produtores. Curiosamente foi o meu único filme que deu lucros apesar da sua mutilação» (António, ibidem).

10Como foi anunciado na publicidade de imprensa.

11E cujos planos cortados terão ardido no incêndio da Tóbis.

12Manuel Guimarães diz que foi o seu único filme que não deu prejuízo. Esteve três semanas em cartaz no Trindade em Lisboa, de onde teve que sair por ter sido subitamente demitida pelo Fundo do Teatro a direcção da companhia Teatro d’Arte de Lisboa que tinha a concessão do teatro, dirigida por Orlando Vitorino e Azinhal Abelho, reconhecidos oposicionistas (vide comunicados publicados na imprensa).

13Pina, 1987: 125. Esta observação de Luís de Pina foi glosada por vários outros sem a confrontarem com o filme original.

14Existente na biblioteca da Cinemateca.

15Note-se que a autoria do filme é partilhada entre o realizador e o escritor Alves Redol, a partir de um argumento de Manuel Guimarães, Pardal e Companhia, que apresentava algumas personagens comuns - Vossa Senhoria, Gaivota, Pardal - e se localizaria no Porto, na bairro ribeirinho do Barredo . A partir desse argumento prévio, Alves Redol desenvolveu a sequência e os diálogos, mas o argumento é todo ele muito diferente do inicial. A planificação e a realização são de Guimarães.

16Terá esta alteração sido feita com a colaboração de Alves Redol? Aparentemente não, visto que já não assina a sequência, mas apenas os diálogos.

17Matos-Cruz, 1999. Contudo o mesmo autor, noutra publicação, já não afirma que os critérios foram comerciais, mas pessoais: «A versão original de Vidas sem Rumo (1956) foi cortada “em 45%” (Manuel Guimarães), por critérios pessoais após censura» (MATOS-CRUZ, José de. «Breve Dicionário Tipológico do Cinema», in TORGAL, Luís Reis, ed. [2001b]. O Cinema Sob o Olhar de Salazar. Lisboa: Temas e Debates, 2001: 377). A fonte referida baseia-se em testemunho oral do próprio realizador. Porém, noutros locais aparece o valor de 50 % e até que 80% do filme fora cortada. Na planificação, pude verificar que da versão original foi cortado, sim , menos de 20% do guião (11 páginas em 62) - e que as cenas refilmadas, essas sim, poderão consistir em mais de 40 % do tempo do filme final (cálculo que não tive oportunidade de confirmar).

18Esta visão é exactamente contrária àquela do filme de Jorge Brum do Canto, Retalhos da Vida de um Médico (1962), que, adaptando também um romance de Fernando Namora, descreve os camponeses como ignorantes e maldosos, com excepção dos ciganos, esses sim, selvagens rousseaulianos rudes e puros. Este filme, apesar de baseado num autor literário neo-realista, assume a visão que o realizador quis extrair do texto original, a sua leitura pessoal, um olhar cínico de descrença no ser humano. A visão humanista e ingénua de Guimarães terá mais afinidades com Dom Roberto (1962) de Ernesto de Sousa, ou com Pedro Só (1971) de Alfredo Tropa.

19Como se justifica no recurso apresentado à censura da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos.

20Pina, ibidem.

21A versão emitida pela RTP tem apenas 94 minutos.

22Processo que consultei nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo.

23Anteriormente designada de Comissão de Censura aos Espectáculos.

24Falo em autores porque, no genérico inicial, surpreende o facto de não vir referido o nome de quem fez a adaptação (nem o argumento, ou a sequência ou a planificação, como Manuel Guimarães costumava assinalar). Essa omissão esconde obviamente alguém. Pela consulta de um guião (inicial e sem data) existente na biblioteca da Cinemateca, fiquei a saber que a figura omitida foi Orlando Vitorino, dramaturgo, encenador e realizador que não era bem visto pelo regime. Assim, atribuirei provisoriamente a adaptação e sequência deste filme a Orlando Vitorino e Manuel Guimarães em conjunto, deduzindo que a planificação fosse do encargo do realizador, como era habitual. Outro crédito que não aparece atribuído é o dos cantos populares usados: onde foram gravados e por que grupo coral.

25Note-se que o filme teve ante-estreia em 25/8/1965, onde terá sido mostrado na sua integralidade, visto ser uma data anterior ao pedido de exame na CECE.

26Outra bizarria ainda maior é o facto de passado apenas uma semana da estreia, o distribuidor sugerir mais dois cortes no filme, com o objectivo de baixar a idade para que estava classificado (de 17 para 12 anos), pretensão que a Comissão aceita, indicando vários outros pequenos cortes, mas de que a empresa se arrepende passado um mês por haver protestos do público, pedindo a restituição dos cortes e voltando a montar a versão primeiramente aprovada que é aquela que conhecemos. Afinal, contra quem lutava Manuel Guimarães: contra a censura e contra os distribuidores? Em que momento foi obrigado a vergar-se ou a desistir? Após a estreia, presume-se, diante da pouca afluência do público. O filme esteve em exibição em Lisboa durante duas semanas apenas, segundo o cartaz de espectáculos publicado nos jornais diários.

Leonor Areal

Leonor Areal tem licenciatura em Estudos Portugueses e mestrado em Comunicação Educacional Multimedia. Estudou vídeo no Instituto da Juventude e cinema na New York Film Academy. Publicou, em 2011, Cinema Português - Um país imaginado, obra que decorre da tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2009). Realizou vários documentários, entre os quais Fora da Lei (2006), premiado no Doclisboa. Actualmente faz investigação de pós-doutoramento sobre censura no cinema português. É professora na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha.