International Journal of Cinema

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OS

SUPER-HERÓIS TOMAM CONTA DE NÓS:
UMA IDADE DE OURO DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA?
de
Luís Nogueira
OS SUPER-HERÓIS TOMAM CONTA DE NÓS: UMA IDADE DE OURO DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA?
de Luís Nogueira

A escolha do tema prendeu-se com a crescente vaga de adaptações de bandas desenhadas ao cinema que tem ocorrido nos últimos anos, com grande sucesso em muitos casos (quer em termos comerciais quer em termos artísticos). Esta ligação entre duas formas de expressão visual marcantes da designada popculture,ao longo do século XX e neste início do século XXI,é um tema que me interessa do ponto de vista estético, ético, narrativo e formal. Há mutações, apropriações e hibridismos que me interessa questionar e refletir.

No essencial, manteria a abordagem que foi efetuada no artigo, em que optei por uma perspetiva abrangente e plural. Ainda assim, do ponto de vista temático, há um aspeto a ser desenvolvido em futuras oportunidades: trata-se do uso do plano contra picado na banda desenhada e no cinema, na medida em que podemos ver, de algum modo, o plano contra picado como uma invenção do cinema e um leit-motiv da banda desenhada.No que respeita à banda desenhada, centrar-me-ia na abordagem da obra de Alex Ross, um virtuoso ilustrador Americano, onde esta modalidade visual está muito presente. No que respeita ao cinema, remontaria ao cinema soviético dos anos 20 e ao cinema alemão dos anos 30 para efetuar uma espécie de arqueologia do plano contra picado.

Um outro aspeto de relevo e interesse prende-se com a representação da violência emambas as artes e com os seus processos de hiperbolização, de ironização e de realismo, algo muito presente nas bandas desenhadas clássicas e atuais e muito constante nas suas adaptações cinematográficas.

No que toca a referências bibliográficas, não efetuei trabalho de pesquisa específico para este estudo. A reflexão assentou, de facto, num exaustivo visionamento e análise de filmes e na leitura de bandas desenhadas incontornáveis da história dos comics, procedendo depois comparativamente.

Julgo que se trata de um estudo abrangente que pode abrir vastos caminhos de reflexão sobre esta temática. Estou em crer que esta área de reflexão, onde se cruza o cinema e a banda desenhada, será cada vez mais relevante em termos académicos. Há um fenómeno de adesão geracional que se verifica em termos de audiência e que não deixará de se transpor para a academia. A banda desenhada e o cinema vivem, ou viveram,historicamente uma dificuldade de aceitação e prestígio artístico cujas motivações importa também problematizar e, eventualmente, refazer.

Atualmente encontro-me a preparar um projeto de investigação sobre os pequenos formatos na cultura visual contemporânea no qual as questões abordadas neste artigo podem ser facilmente inseridas. A banda desenhada é uma forma de expressão também ela com a sua diversidade de formatos e devidas implicações formais e hierarquias valorativas. E as suas adaptações audiovisuais passaram não só pelo cinema como pela televisão, não só pelas longas-metragens mas também pelos serials e a animação.

Abstract

Heroes (either super, simple or anti) have taken, in recent years, the world of film through comic books adaptations.
This is not new, but it happens on an unprecedented scale. If we assume that, in the twentieth century, comics stand for graphic arts as film stands for moving images, pop culture seems to be closing a cycle in taking our imaginary.
Comic books adaptations are increasingly common both in American and European industries. Still, fairly or not, those images and themes are looked at with critical and academic significant disdain. For this reason also, it seems the right moment and a good pretext for retrieving multiple instances of philosophical and theoretical thought in philosophy and cultural theory - the critique of the cultural industries, the critique of the society of the spectacle, the volatility of post-modernity - and relate it to comics and films altogether.
Right now, we seem to witness a kind of golden age of comics’ adaptation, with consecutive titles to be produced. That seems not negligible to us; so we ask: why this phenomenon? Are the generations of geeks and young people of past decades taking in their hands the cultural celebration of their heroes? How and who determines and monitors the parameters and modalities of the adaptations (free, literal, true or... inadmissible)? Is there some sort of artistic guarantee in the contribution of undeniably prestigious authors - from both arts - such as Stan Lee, Frank Miller, Alan Moore, Enki Bilal and Dave McKean, Tim Burton, Christopher Nolan, Bryan Singer, Ang Lee or Zach Snyder?

Keywords: Superheroes, Adaptation, Culture industry, Post-modernity, Pop Culture.

Da técnica

Numa primeira intuição, bastariam três letras para se compreenderem as causas da vaga crescente de adaptações cinematográficas de bandas desenhadas de super-heróis a que temos vindo a assistir desde há pouco mais de uma década: CGI. Computer Generated Imagery. Não precisamos ser peritos para perceber que as profundas mudanças tecnológicas ocorridas a partir de meados da década de 1990 na produção cinematográfica ofereceram possibilidades antes insuspeitadas para a conversão fílmica destes universos delirantes e personagens fabulosos. A verosimilhança é, como o sabe o realizador mais escrupuloso ou o mais aficionado jovem, um aspecto decisivo. O maior risco criativo que se pode correr é acrescentar a universos, personagens e eventos já de si bastante elásticos ou sinuosos no que respeita à credibilidade qualquer suplemento de cepticismo de natureza técnica. Percebemos com relativa facilidade a centralidade desta questão recorrendo a um episódio narrado no making of de Superman por Richard Donner. Aquando da mítica adaptação cinematográfica de 1989 do primogénito dos super-heróis, Donner colocou no seu gabinete uma imagem de Superman a carregar consigo o peso da verosimilhança, como se de uma mnemónica se tratasse. O extraordinário triunfo do filme provou o valor do esforço e a razão de Donner. De algum modo, a história das artes visuais é uma história do aparecimento e do desaparecimento. Platão falava da simulação das aparências na pintura; a fotografia fez da revelação o seu momento epifânico. Aparecer- desaparecer-mudar é também uma tríade decisiva nos super-heróis. Em universos feitos de tão insólitas criaturas e acontecimentos, esta capacidade para apresentar visual (e sonoramente) o aparecimento, a transformação ou o desaparecimento de seres quase mágicos e prodigiosos torna-se um dos desafios fundamentais.

Entre a facilidade técnica e expressiva do desenho e a ambição foto-realista do cinema (e, por contiguidade, do CGI) se desenha um dos traços mais distintivos entre a banda desenhada e a sua transposição cinematográfica: naquela constatamos uma diversidade enorme de estilos que desaparece quando as obras são levadas ao cinema. Onde o desenho, enquanto arte manual, tende a sublinhar o estilo do seu autor, a carregar consigo o inédito ou a valorizar o insólito, o cinema, enquanto arte mecânica, tende a guardar, como uma camada e uma convenção, a textura da realidade fotográfica. Por isso se compreende que as adaptações tendam a emular a realidade, mesmo quando nos apresentam mundos fantásticos; e que apenas em casos pontuais se encontre uma forma de abordagem visual mais afastada do fotográfico e mais próxima da abstracção que todo o desenho constitui (como Sin City, 300 ou The Spirit).

Esse gesto de abstracção cinematográfica servida pelo CGI aconteceu nos três casos referidos com estratégias de adaptação bastante diversas: em Sin City, o objectivo foi que quer narrativa quer visualmente a versão cinematográfica se aproximasse com rigor e fidelidade da obra original. Em 300, havendo um grande respeito pela paleta de cores do original desenhado, acrescentou-se uma dimensão diáfana, uma textura apenas implícita na banda desenhada. Em The Spirit, a estratégia da abstracção está nitidamente presente, mas a estética adoptada no filme é fundamentalmente oposta à da banda desenhada de Will Eisner.

É de assinalar que a uma maior determinação técnica dos filmes (basta pensar que 300 ou Sin City, por exemplo, são, digamos assim, quase integralmente feitos no computador) corresponda uma diminuição crescente dos constrangimentos figurativos - quer isto dizer que quanto mais estes mundos imaginários são feitos em computador, mais eles tendem a ser verosímeis. De algum modo é como se, nestes três exemplos, a realidade fosse restringida à sua condição de fundo (mais ou menos codificado, mais ou menos realista), mas surgindo ilusioriamente ex- nihilo: dispensamos a realidade em favor de um green screen. Neste tipo de produções, “quanto menos realidade, melhor”. Basta-nos colocar a imaginação num ecrã verde. Mesmo quando a fantasia narrativa se pretende realista, é no interior do computador que o mundo se origina - excepcionam-se, naturalmente, esforços de verosimilhança materialista, se assim se pode dizer, como os de Batman Begins ou Dark Knight que apostam sobretudo na reprodução da realidade ou, pelo menos, na sua mimetização escrupulosa.

Da bidimensionalidade do desenho à tridimensionalidade do cinema, há diferenças no tipo e na quantidade de informação que é transmitida ao leitor e ao espectador. Onde o desenho vive de linhas estáticas, de manchas monocromáticas e de diálogos e onomatopeias surdas, o cinema vive de volumes texturados, de movimentos frenéticos e de sons estridentes. O desenho (e a pintura) faz aparecer e desaparecer a realidade e a fantasia. A fotografia também (ainda que com maior facilidade faça aparecer a realidade do que a fantasia e lhe seja difícil fazer desaparecer a realidade). O cinema, até ao advento do CGI, era bem propenso a recriar a realidade, mas as suas fantasias caducavam com demasiada celeridade (os efeitos especiais tornavam-se notados, os filmes envelhecidos e datados). As pinturas matte ou o blue screen são exemplos dessa dificuldade em enxertar de modo invisível a fantasia na realidade. Essa invisibilidade do enxerto ganhou renovada esperança - por quanto tempo, ver-se-á... - com o advento e desenvolvimento do CGI. As imbricações, as mutações, as suturas, os enlaces tornam-se como por magia (desde Méliès, a magia é irmã do cinema) absolutamente verosímeis, indetectáveis. Agora, a metamorfose de um mutante ou de uma cidade ou a explosão do universo podem ser feitas segundo um princípio-chave da verosimilhança: seamless, sem costuras. Alfaiataria perfeita, portanto: a mais meticulosa manufactura e a mais sofisticada tecnologia.

Quiséssemos nós fornecer mais uma pista de leitura para a imbricação entre tecnologia e ficção e poderíamos convocar o princípio sinestésico da adaptação. O que queremos dizer? Que a adaptação obedece a um princípio que apenas a espaços é contrariado: ela ocorre, por norma, partindo de um meio menos sinestésico para um meio mais sinestésico, de um mais abstracto para um mais concreto no seu suporte - da oralidade para a literatura para a pintura para a banda desenhada para o cinema… e no futuro? Para o videojogo. O ser humano quer uma experiência completa: mais sensações, mais ritmo, mais verosimilhança… mais vida. Ora, a tecnologia determina, em muito, o que se pode fazer no cinema (confira-se a longa maturação de Avatar). Não espantará, assim, que o cinema tenha esperado tanto pelas condições óptimas para dar vida a estes mundos; mas também que quando reunidas essas condições, o imaginário vasto e fecundo da banda desenhada tenha passado a conhecer mais e mais reconversões e apropriações.

Da arte

Procurámos averiguar das condições técnicas para esta vaga. Constatámos que o surgimento do digital trouxe para géneros como a ficção científica ou o fantástico possibilidades de verosimilhança há muito prometidas, mas ainda não cumpridas. Talvez devido a essa espécie de libertação técnica (e, logo, da imaginação), estes dois géneros tornaram-se inequivocamente, na actualidade, os mais populares da indústria. Basta atentarmos no filme mais visto de sempre, Avatar; ou no sucesso de sagas como Harry Potter e Twilight; ou até no maior blockbuster de comics, Dark Knight. Ora, é precisamente nestes dois géneros que podemos classificar as histórias de super- heróis. Consequentemente, os filmes de super-heróis estão em linha com os géneros dominantes no que respeita a popularidade.

Pensamos que ajudará a entender este estado de coisas o facto daqueles géneros serem no imaginário cinematográfico americano, os que mais aproximam o cinema de uma experiência de verdadeira pop-culture. A ficção científica e o fantástico ajudaram, em diversos momentos, a solidificar uma percepção popular e juvenil do cinema ao longo do século XX - da ficção científica da época dourada dos anos 50 às sagas Star Wars, O Senhor dos Anéis ou Terminator e a obras de culto como 2001 - Odisseia no Espaço ou Matrix.

O imaginário de inúmeras gerações construiu-se ao longo do século XX no âmbito da cultura pop, seja através da música, da banda desenhada, do cinema ou mais recentemente dos new media. É nesse contexto que alguns jovens autores de comics (de culto e de panteão) vão inaugurar uma nova forma de literatura - e de mitologia -, de algum modo recuperando ancestrais ideias, figuras e valores. Atentemos à idade de alguns destes autores aquando das suas criações: Jerry Siegel e Joe Shuster têm 24 anos quando em 1938 sai o primeiro número de Superman (uma personagem em gestação desde cinco anos antes); esta é igualmente a idade de Bob Kane quando cria Batman. Quanto a Stan Lee, se é certo que apenas por volta dos 40 anos cria as suas inúmeras personagens emblemáticas (início da década de 60), como Spider-man ou os X-men, a verdade é que ele se encontrava ao serviço da indústria desde os seus 20 anos. Em tempos mais recentes, autores como Alan Moore escreve aos 33 anos a obra de culto Watchmen; Frank Miller tem 29 anos quando lança Dark Knight Returns, em 1986; e Mark Millar tem cerca de 35 anos quando lança as suas obras mais conhecidas como Wanted ou Kick-Ass.

Valerá a pena uma perspectiva semelhante sobre os realizadores. Estamos em crer que deste modo a dinâmica geracional será mais fácil de entender. Exemplos: Tim Burton tem 31 quando Batman estreia; Bryan Singer tem 35 anos quando conclui X-Men, tal como Christopher Nolan quando estreia Batman Begins; Guillermo Del Toro tem 40 quando sai Hellboy; Sam Raimi, Zach Snyder ou Jon Favreau têm 41 anos aquando da estreia de Spider-man, 300 e Iron Man, respectivamente. Podemos então efectuar duas constatações: por um lado, a idade de acesso ao mundo de cinema tende a ser mais elevada do que ao mundo da banda desenhada; por outro, há um diálogo de gerações que atravessa o século XX sob o signo da pop culture.

São estes realizadores-fãs que perpetuarão este imaginário. Ao mesmo tempo assistimos à passagem de uma cultura popular a uma cultura pop. Se é certo que as ideias de cultura popular e de pop culture não coincidem, a verdade, porém, é que é possível encontrar pontos de contacto muito vincados. Se podemos ver no merchandising e na massificação (características marcantes da pop-culture) uma desvirtuação hipotética da cultura popular - na medida em que ocorreria a diluição da autenticidade e da especificidade locais numa indústria homogénea e de disseminação universal -, é inegável, porém, que uma transmutação não implica necessariamente uma traição. Senão vejamos: as tradicionais máscaras carnavalescas de heróis ou demónios arquetípicos são, a partir do surgimento dos super-heróis, substituídas na figura, mas não na função.

Teremos então de aceitar que parte do imaginário popular é tomado pelos super-heróis não apenas através dos mass-media como a imprensa, os comics, a televisão ou o cinema, mas também através de formas de expressão ancestrais como os brinquedos e o carnaval. Atentemos nas action-figures. Todos sabemos que os brinquedos são objectos e símbolos que respondem a uma condição antropológica indesmentível e incontornável: a brincadeira, o jogo, o faz-de-conta. O que os super-heróis, e outras figuras similares da pop culture, vêm fazer é precisamente ocupar um espaço significativo também no âmbito do lúdico. É como se a dimensão lúdica fosse tomada em toda a sua extensão pelos sonhos mais íntimos de cada sujeito, dos quais os super-heróis são a efígie contemporânea: o voo, a invulnerabilidade, a magia, a imortalidade. E, de um outro ponto de vista, é como se uma estatuária de culto se reconfigurasse igualmente: as action-figures seriam uma versão pop, infantil, doméstica, da estatuária religiosa que antes ocupava as habitações. Em vez de anjos e santos, temos heróis e robots; em vez do cosmos, os comics. Façamos uma profissão de fé: cremos que o culto no contexto da indústria cultural pode ser tido como prática genuína. Os comics e os seus heróis situam-se numa encruzilhada interessantíssima: entre o religioso e o secular, o sagrado e o profano. O secular é recoberto com o fervor (que não a reverência) e com a adoração (que não o servilismo) próprios do sagrado. Só que numa versão menos solene e mais cool (em vez do milagre, o prodígio). Não que a mise en scène seja muito diferente: lá temos a escatologia apocalíptica, a ascensão (os heróis vigilantes sobre os arranha-céus) e a queda (os vilões nas profundezas da perdição e da prisão); lá temos o céu (de onde nos chega Superman) e o inferno (onde caem todos os celerados). A religião do cool substitui o culto da religião. Podemos gritar kitsch! se quisermos embaraçar os leitores ou os espectadores. Podemos condenar a ligeireza para sossegar as consciências eruditas. Podemos censurar o esvaziamento de uma gravidade milenar do Bem e do Mal. Podemos recriminar a violência gráfica. Porém, todo o poder crítico ou retórico tende a ser deficitário perante o poder dos super-heróis: as suas marcas nas mentes - nas almas, será? - dos seus cultores são indeléveis.

É que quando chegaram, os super-heróis chegaram em legiões. O que encontramos nos universos DC e Marvel? Milhares de personagens. Literalmente. E incontáveis histórias, guerras, locais e tempos, crises, temores. Há nestes universos uma irradiação infinita: todas as culturas, épocas, ideias, figuras, triunfos, virtudes, traições. Arquétipos em reconversão constante. Reinventar, refazer, recuperar: deuses, titãs, heróis, vilões, demónios. Tudo se envolve e tudo revolve nestes universos, nestas matrizes e nestas malhas, do deus mais poderoso ao demónio mais execrável. Que a alta cultura tenha encontrado nos comics uma forma de preservação ou revitalização deve dizer- nos muito sobre a ligação profunda entre a herança civilizacional mais remota e fundadora e a indústria cultural mais descomprometida. Não que se confundam, mas certamente não se estranham.

Do mito

É incontornável a evocação de remotas figuras míticas a propósito dos super-heróis; mais subtil ou mais manifesta, a sua presença é constantemente notada. Se no título deste estudo falamos de uma hipotética idade de ouro fazê- mo-lo por analogia com aquilo que se convencionou caracterizar como a golden age dos comics, entre o final dos anos 30, com o surgimento de Superman e Batman, e o início dos anos 50, com o crepúsculo dos super-heróis. De modo similar (apesar de uma década de 90 bastante promissora), é nos anos 2000 que as adaptações aumentam de forma constante em número e crescem imenso em sofisticação.

Mas a ideia de Idade de Ouro, com a sua ressonância e fabulatória, pode também remeter para o período primevo, o arché, e deve permitir-nos, por isso, fazer a ponte com o mito, tema tão intensamente abordado nos comics. The Greatest Story Ever Told. Assim se chama o filme de 1965 no qual George Stevens põe Max Von Sydow a encarnar Jesus Cristo. É sem dúvida a maior história alguma vez contada. Mas o título do filme poderia ser igualmente transposto para a narrativa de Kal-el ou Clark Kent… ou Superman. Atentemos na caracterização das personagens de Jesus Cristo e Superman: uma figura messiânica que vem dos céus para salvar a humanidade operando milagres e defendendo o bem de forma intransigente. As épocas (e logo as estratégias e as ferramentas da missão) são diferentes, mas o propósito e a intenção última são idênticos. Do religioso para o secular, mantém- se um protector alienígena que nos providencia a salvação. Na sua mudança, o mito perpetua-se.

Outra semelhança pode ser encontrada entre a forma simbólica do mito e as modernas figuras dos super-heróis: a repetição do storytelling. Uma das características do mito desde a oralidade prende-se precisamente com a repetição: o mito é casual ou ritualmente recontado com o objectivo de perpetuar a sua memória e a sua vigência. Ora, uma das características fundamentais que encontramos nos comics prende-se com a necessidade ou a vontade de recontar constantemente as origens dos super-heróis, certamente para reavivar a sua memória e o seu exemplo. Mas também porque, devido à sua natureza e fabulada e extraordinária, a credibilidade destas personagens precisa ser constantemente atestada (pois, em muitos casos, elas são stranger than fiction). Se quisermos ser cínicos, podemos, por outro lado, ver nesta reiteração das origens não mais que um propósito comercial que a estratégia do reboot assinalaria com nítida clareza.

As personagens que habitam este imaginário não são apenas stranger than fiction. Há um outro epíteto que lhe é apropriado: bigger than life. Por vários motivos: porque estão acima de nós, comuns mortais, dos nossos padrões e limites; porque a sua existência não cabe numa vida (basta perceber que estas são personagens que não morrem, que atravessam tempos e lugares incomensuráveis); porque a sua dimensão mítica e simbólica os subtrai à obliteração e os ascende ao panteão; porque iluminam os dramas quotidianos à luz dos valores mais elevados e das façanhas mais heróicas; porque renovam os sonhos, os desejos e as fantasias dos humanos que atravessam a vida presos num corpo pesado, envelhecendo e morrendo. Por todos estes motivos, a imaginação torna-se delirante. As imagens dos super-heróis - entre a ontologia e a extravagância - são agora mais fáceis de compreender: elas podem, e devem, dar uma forma a uma força (que poderíamos sintetizar na conjugação do fato e dos super-poderes), a forma e a força dos nossos sonhos e fantasias. Por isso, toda a personagem acumula sinais. E a imagem acumula delírios. Delírios que podem ser bondosos, libidinosos, alquímicos, vertiginosos, angelicais, evangélicos, demoníacos. Mas humanos, sempre.

Os super-heróis são seres que nos sobrevoam, novos anjos ou deuses. São figuras que podemos ver acima de nós, rente ao skyline ou perdidos no firmamento. A este propósito poderíamos evocar a pintura religiosa ou o trompe l’oeil que noutras épocas tão magicamente convidaram à plenitude mística: acima de nós, planando, flutuando, vigiando ou escondendo-se, estes heróis superlativos parecem sempre à espera de um chamamento humano, demasiado humano, de que o símbolo mais perfeito e literal seria o sinal que a população de Gotham projecta nos céus, a luz que ilumina as trevas da metrópole (como na pintura religiosa encontramos o halo do Espírito Santo). Onde antes os anjos vigilantes nos guardavam, agora os justiceiros prodigiosos nos contemplam. Nós, os terrenos, aqui, em baixo, enredados em humildade doméstica ou frenesim urbano; eles, os maravilhosos (marvels), lá acima, sempre solícitos a acudir-nos, monitorizando nos telhados ou descendo dos céus. Se olharmos a pintura religiosa que nos dividia entre os celestiais e os terrenos, facilmente percebemos a simetria.

Se evocamos aqui a pintura religiosa, fazê-mo-lo por vários motivos. Um deles prende-se com a seguinte constatação: num mundo que desde a idade da razão se tornou cada vez mais técnico, automático, geométrico, abstracto, regrado, mensurado, desmistificado, desiludido e secularizado, géneros como o fantástico ou o terror (e em certa medida a ficção científica) tornaram-se redutos de um imaginário menos racionalista e tecnológico que foi sendo remetido para bolsas de imaginação tidas por atávicas pelos guardiões do rigor intelectual (mas, curiosamente, de grande apelo popular). É lá que encontramos, nesses mundos de sonho e fantasia, de projecção e especulação, de fábula e maravilhamento, traços de uma herança gótica, romântica, simbolista, fantástica: monstros, demónios, névoas, fogos, halos, brilhos, sombras, criptas, grinaldas, coroas.

Também encontramos nestas histórias todo o espectro da matéria em transformação: a água, o ar, a terra, o fogo. Os quatro elementos podem ser armas, símbolos ou corpo. A magia parece regressar; dos tempos profundos do mito original para a réplica anacrónica dos comics. Da água nos vem Namor. Em fogo se transforma o Tocha Humana. The Thing é uma rocha vivente. Storm domina o clima a seu belo prazer. Há certamente muito de alquímico nestas personagens e nos acontecimentos que elas provocam. É como se o mundo fosse uma espécie de laboratório incomensurável onde se experimentam as mais diversas fórmulas mágicas. Onde todas as transformações parecem possíveis. Caso paradigmático: o morphing de Mystique, a mutante que pode mimetizar qualquer forma. Mystique seria então o emblema perfeito do desejo de metamorfose que nos habita. Aliás, os próprios autores de comics, na sua imaginação delirante, permitiram-se as mais desmesuradas efabulações: a mais sensual das amazonas; o mais desfigurado dos vilões; o mais sereno dos colossos; o mais monstruoso dos meliantes; o mais apolíneo dos heróis; o mais carnavalesco dos criminosos. Todas as formas hão-de encontrar-se aqui, do grotesco e do abjecto ao diáfano e ao celestial. Em cada um, uma actualização dos mitos prematuros ou clássicos. Uma alquimia universal, digamos; mas instável, feita não apenas de prodígios, mas também de aberrações, de incidentes e erros, de culpas punitivas e crimes sem redenção.

Da narrativa

Não são sinónimos, mas aos termos mito e narrativa não se nega uma proximidade quase ontológica. Entre os mitos se encontram certamente muitas das narrativas primordiais. E entre as narrativas mais populares se contam os mitos. As cosmogonias seriam o molde e o género matricial deste cruzamento. Explicamos o mundo com mitos. Com fábulas e com contos. Em todo o caso, sempre com narrativas. A narrativa é um elemento fundamental para se compreender o sucesso dos comics e das suas adaptações. Até porque, como será fácil constatar, tanto o cinema como os comics encontram na narrativa a sua moldura mais comum, quase incontornável. Daí a facilidade de identificação de leitores e de espectadores com as personagens e universos apresentados.

Ora, se tomarmos como uma das características fundamentais do pós-modernismo a falência (ou, pelo menos, a crise) das grandes narrativas, podemos ver como a assumpção dos comics como um dos avatares desse período nos coloca embaraços analíticos deveras estimulantes. Isto porquê? Porque nos comics encontramos em simultâneo as mais diversas escalas e modalidades da narrativa: a grande e a pequena, a quotidiana e a olímpica, a linear e a rizomática, a fragmentária e a enciclopédica. Isto torna-se tão mais relevante quanto o volume e a escala são critérios de aferição artística e crítica de uma obra - como se toda a certificação da qualidade assentasse no critério da quantidade. Como se o sublime exigisse o colossal, como se o incomensurável fosse condição do genial. Ou seja: como se a grande narrativa tivesse de ser necessariamente uma narrativa grande. Ora, os comics têm tendência a criar grandes histórias com narrativas pequenas (e o inverso também será verdade).

O que existe de estimulante nos comics é precisamente o modo como estes critérios (a quantidade e a qualidade) se contrastam, reforçam ou anulam. A análise da narrativa nos comics a partir da ideia de grandeza impõe-se em múltiplas instâncias. Comecemos pela questão da grande narrativa. A ideia de uma narrativa grandiosa, épica, universal, total, não tem certamente origem nos comics. Ainda assim, um dos tópicos recorrentes nos comics é precisamente a ameaça apocalíptica. De algum modo, podemos encontrar aqui um certo paralelismo com a invenção de um cinema-global que surge na produção americana de ficção científica dos anos 1950 em que o mundo inteiro se encontra em risco cataclísmico: múltiplas capitais e países simultaneamente em perigo.

Ora, no que respeita aos comics, o salvamento pode ocorrer em várias instâncias e dimensões: pode ser um salvamento doméstico (a namorada ou a família), metropolitano, civilizacional ou mesmo cósmico. Assim, quando a escala entra no grau cósmico, aquilo que podemos constatar é que se trata não apenas da grande narrativa, mas mesmo da maior das narrativas, a narrativa total que coloca toda a humanidade ou mesmo toda a existência perante o desaparecimento. As ideias de aniquilação ou de extermínio tornam-se prementes, a sensibilidade apocalíptica irreprimível. A ser assim, a falência da grande narrativa seria contrariada pelas histórias que na banda desenhada, como no cinema, assumem essa dimensão ecuménica, universalista ou cósmica.

E, no entanto, há dois aspectos que a partir do interior e do exterior desafiam esta ideia de grande narrativa: um tem a ver com a lógica sumária, o outro com a natureza fragmentária de muitos comics. No que respeita à primeira característica (a tendência sumária das narrativas), o que queremos dizer é que, inicialmente, as histórias de super- heróis eram contadas em relativamente poucas páginas, de uma forma acelerada: cada cena ou evento tendia a ser apresentado num único plano ou vinheta, de modo que a informação era condensada como um epítome, uma súmula. Esta característica ia de par com um outro aspecto em certa medida similar: a tendência para a caricatura, em que um aspecto mais marcante da personagem é colocado em nítido relevo. Sucedia então que facilmente as personagens passavam de uma tridimensionalidade naturalista a uma unidimensionalidade cartoon. Foi precisamente por aí que o cinema, na expectativa de granjear respeitabilidade nas adaptações, teve de fazer o seu percurso: dar densidade tanto às personagens como aos acontecimentos. A lógica sumária herdada pelos comics das comic-strips precedentes foi deixando de servir e o lado mais cartoon das personagens foi-se revelando também incipiente e rejeitado. Quando este ajuste não foi feito, o fracasso na adaptação tendeu a ser regra.

Quanto à típica fragmentação da narrativa dos comics, podemos constatá-la na lógica de folhetim herdada das comic-strips, mas também nos cross-overs, spin-off ou reboots. O que sucede neste caso é que as narrativas tendem a ser apresentadas de forma episódica, constantemente renovada. A ideia de cliffhanger torna-se fundamental, retomando a tradição referencial das Mil e Uma Noites. O propósito é muito claro: criar, manter, aumentar, renovar ou relançar a expectativa do leitor. Este é convidado a regressar ciclicamente às aventuras dos seus heróis. Tal lógica episódica ou fragmentária pode ser agora vista, retrospectivamente, como precursora do que sucede hoje em dia nas adaptações para cinema: sequelas, prequelas, trilogias, tetralogias tornaram-se recorrentes, evocando a lógica dos serials dos anos 40 (um dos meios de transposição dos comics para filme).

Igualmente nesta dinâmica narrativa encontramos os cross-overs, os spin-off ou os reboots. No primeiro caso, trata-se de cruzar personagens ou universos heterogéneos: por exemplo, Spider-man e Superman, um de Nova Iorque, o outro de Metropolis, um da Marvel, o outro da DC. O spin-off consiste em apartar uma personagem de um determinado grupo e dar-lhe uma história própria como protagonista - temos o caso famoso de Wolverine, o mais popular dos X-Men. O reboot é de todas as estratégias a mais radical já que neste caso tudo começa de novo, apagando-se o que existiu antes, como se uma determinada história estivesse a ser contada pela primeira vez.

Esta tendência para a fragmentação é apenas uma das modalidades em que podemos perceber a grande elasticidade destas narrativas. Ela pode encontrar-se não apenas ao nível da narração, mas igualmente da própria história. Queremos com isto dizer que, porque estas histórias tendem a aproximar-se do fantástico (género que juntamente com a comédia, e em menor grau a ficção científica, se conta entre os mais elásticos no que respeita à verosimilhança), elas permitem uma grande flexibilidade e fabulatória. Podem a qualquer momento entrar novas personagens ou mudar-se de espaços e de tempos. O twist é um must. Daí que as ideias de utopia e de anacronismo nos pareçam quase familiares: as histórias passam-se muitas vezes em épocas a-históricas ou em universos paralelos ou em realidades alternativas ou em mundos sem referente real (veja-se os casos paradigmáticos de Gotham ou Metropolis, cidades que, mesmo tendo Nova Iorque como referência, não pertencem à cartografia do nosso planeta). Assim, viajar no tempo e viajar para lugares imaginários (através do teletransporte, por exemplo) são ocorrências comuns nestas histórias.

Mas se há uma elasticidade fantasista muito evidente, a verdade é que estas histórias tendem a ancorar-se em questões muito íntimas ou pungentes. Em muitos casos, trata-se de narrativas de exemplo e formação, com uma mensagem política, cultural, social e moralmente caucionada. Frases como “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades!”, o mote de Peter Parker/Spider-man, ou “caímos para aprendermos a levantar-nos”, máxima seguida por Bruce Wayne/Batman, são ilustrativas da ética vincada que atravessa estas histórias. Talvez por isso mesmo os heróis mais populares sejam os mais humanos - na sua origem, nos seus dilemas, nos seus medos, nas suas falhas, nos seus desejos. Caso de Batman ou dos X-Men. Daí também que muitos dos heróis sejam órfãos: Superman, Batman, Spider-man. Como se a bênção dos super-poderes que lhes dão uma posição, e muitas vezes uma pose, privilegiada tivesse o contrapeso trágico da perda mais dilacerante.

Esta humanidade indelével podemos encontrá-la igualmente nas histórias que recuperam a clássica hybris. A figura tutelar de Prometeu é a referência a ter em conta. Desafiar os deuses pode trazer consequências devastadoras. Contestar as hierarquias pode ser punitivo e trágico. Que o diga Bruce Banner, cujo alter-ego Hulk, um monstro verde irado, é precisamente a consequência de um acidente que o expôs à radiação gama numa experiência militar. Que o digam os quatro fantásticos, e em especial The Thing, um cientista que é alvo de radiação cósmica e que, por rearranjo molecular, se transforma num golem desajeitado, tormento diário da auto-estima. Para não falarmos já em pactos com o Diabo que ecoam necessariamente o imaginário faustiano e que originaram Hellboy ou Spawn, dois heróis famosos da primeira década dos anos 1990.

Mas talvez não seja o lado humano a causa maior da grande popularidade destas personagens. É a sua dimensão bigger than life que as distingue, como se vê numa das suas características fundamentais: a coreografia e a acrobacia que podem desafiar todas as leis físicas e limites humanos. Encontramos muitas variantes: do pugilismo ao ballet, das artes marciais ao malabarismo, da levitação ao projéctil. Há aqui um intenso culto da mobilidade e da dinâmica, da velocidade e do movimento, da superação e da perícia. Há algo de profundamente futurista e metropolitano, quase evocando a speedmania que o crítico Vachel Lindsay identificava no carácter do povo e do cinema americanos, já na primeira década do século XX. Rapidez fulminante e performance inexcedível seriam os dois princípios fundamentais dos acontecimentos e das acções.

Este reenvio para o sobre-natural pode ecoar igualmente na presença catártica ou diletante dos heróis nos topos dos arranha-céus. Os terraços e os telhados tornam-se então um equivalente dos pedestais da estatuária clássica e muitas vezes o palco da performance e do show, da luta de arqui-inimigos entre a vida e a morte. Esta dimensão retórica da grandiosidade e da elevação encontra na própria linguagem dos comics e, talvez ainda de forma mais vincada do cinema, um signo no plano contra-picado, naquilo que designamos aqui por plano épico, capaz de aumentar ainda mais o simbolismo divino da personagem, a sua presença e potência, a nossa reverência e a nossa fé. A este propósito os trabalhos do ilustrador Alex Ross e do cineasta Chistopher Nolan são elucidativos.

Da crítica

As indústrias culturais e a sociedade do espectáculo foram - e são - duas matérias e duas forças incontornáveis na modelação da sociedade e da cultura contemporâneas. É nelas que hoje as ideias de individual e de colectivo, de identidade e de alteridade, de local e de global se inscrevem. Porque é aí que muito (tudo, quem sabe…) se decide, a nossa atenção deverá ser ainda mais acutilante e precisa. Denegar ou recusar, por princípio, as premissas e a relevância destas instâncias culturais obrigar-nos-ia a declinar qualquer propósito da nossa análise. Isto porque o objecto de estudo (os comics no cinema) parece partilhar das características - que não necessariamente vicissitudes - das indústrias culturais e da sociedade do espectáculo. E em dupla dose: através dos filmes e através dos livros. Assumamos então como ponto de partida que a contestação subjectiva ou académica da validade destas personagens e das suas histórias seja legítima; mas contraponhamos, de forma heróica, que talvez esta postura crítica careça de análise mais aturada. Podemos assumir que há muito de escapista nestas histórias. Verdade indisfarçável, obviamente. Porém, perguntemos: será o escapismo um pecado? Erro? Obscurantismo?

E o que pensar da violência, velada ou manifesta? E da crença ingénua na mimetização?

E da propensão para o estereótipo, a repetição, o mesmo? Mas o sujeito não é mais constância do que ruptura, a civilização não é mais hábito do que desvio?

Existe uma incapacidade de recuo e distanciamento crítico e intelectual? Mas não são deveras evidentes as marcas da paródia e da auto-reflexividade nos comics e nas respectivas adaptações?

Acontece uma substituição da essência pela imagem, uma simulação? Mas não é a mediação, toda ela, sempre simulação, algo que nos surge sempre como aparência - mais naturalista ou mais codificada -, como algo que nos interpela enquanto esquema alusivo ou enquanto decalque minucioso de uma ideia?

Assumamos então o escapismo, mas amenizemos a menoridade que lhe costumamos colar. Porque, a avaliar pelo juízo popular, também os leitores de comics e os espectadores das suas adaptações sentem necessidade de crescer, já que, assume-se, é a maturidade que nos inscreve no círculo dos adultos, dos que detêm o critério último, a sentença definitiva, a decisão e a autoridade: o poder. O que se constata como padrão na recepção das adaptações cinematográficas é, precisamente, uma propensão crescente para a recusa dos traços marcadamente infantis: desdém (ou mesmo oposição) do caricatural, do burlesco, do hiperbólico, do ligeiro, do abusivo, do esquemático, do superficial, do camp. Como explicar esta atitude? Estarão as pretéritas gerações juvenis de leitores de comics a assumir no presente a sua maturidade enquanto espectadores de cinema? Ou será o mero juízo de bom senso a ditar as condições básicas de sucesso de uma obra? Seja como for, o certo é que casos marcadamente caricaturais no tom, como Batman Forever, Batman & Robin, The Spirit ou mesmo Kick-Ass foram flops comerciais. Contudo, apesar do seu registo propositadamente paródico, Wanted foi bem sucedido e Dick Tracy ficou num ponto intermédio. Do outro lado, temos filmes como Superman, de Richard Donner, e o mais recente e avassalador Dark Knight como casos de sucesso da gravitas dramática. Diríamos, então, que o público tende a ser criterioso no exercício do gosto; mais, eventualmente, do que suspeitamos. E o público é uma parte fundamental na constituição do cânone deste género de filmes, obedecendo aos critérios da fandom, já que a crítica convencional tende a ignorar estas obras.

Aceitemos então o desdém e a zombaria destes filmes. Aceitemos que a modalidade retórica e narrativa preferencial é o lugar-comum. E assumamos que o lugar-comum se torna muitas vezes em cliché (e é aí que ele inverte o seu valor: de positivo para negativo), quando esgota qualquer potencial hermenêutico ou pedagógico. É então, também. que o lugar-comum se torna inofensivo: um lugar seguro onde regressamos. Mas sejamos mais exigentes e justos com os comics. Para tal precisamos de nos deter com vagar na análise, para falar da elasticidade da alegoria. A alegoria pode aproximar-nos da evidência ou afastar-nos para o enigma. Toda a figura ou toda a palavra comporta uma parte de alegoria. Se olhada em profundidade, poderemos encontrar um outro sentido mais enviesado, mais secreto, porventura íntimo. A revivificação dos deuses antigos em plena sociedade industrial e racional constituirá certamente a mais vasta questão alegórica presente nos comics.

Voltemos ao desdém, que pode chegar à censura. Entretenhamo-nos - palavra tão colada ao assunto em análise - com uma ideia que transcorre muito frequentemente o discurso mediático e criativo neste campo: a homenagem.

Que Stan Lee faça um cameo em todos os filmes dos seus heróis ou que a primeira actriz a interpretar Lois Lane nos anos 40 seja convidada para o último Superman Returns são exemplos da cultura de gratidão e de reverência da fandom. Há algo de religioso, certamente, nesta relação com os ídolos e a tradição. Será algo da ordem do irracional, do obscuro, do inconsciente ou do acrítico? Cada um avaliará. Porém, há um aspecto inegável: não existe fanatismo sem intimidade, não existe homenagem sem devoção.

Foquemos outro aspecto: a ideia de do-it-yourself. Parecerá estranho, numa primeira instância, evocar esta espécie de slogan poiético da contemporaneidade a propósito de algo como os comics ou o cinema, ramos da indústria cultural. E, porém, há no gesto de desenhar (e no de escrever) algo que nos remete para a espontaneidade e para o amadorismo que associamos ao do-it-yourself. Desenha-se por tudo e por nada. Um momento de tédio ou de ócio pode bastar. Grande economia de meios: uma superfície e um lápis ou um estilete. Grande elasticidade criativa: a imaginação desencarcerada. Terá sido assim com Jerry Siegel e Joe Shuster. Ou com Bob Kane. Ou com Stan Lee. Liberta-se a imaginação e um super-homem pode surgir. Um messias. Ou um cavaleiro negro, intrépido e incorrupto justiceiro. Ou aperfeiçoamos a humanidade, levamos Darwin um passo à frente e criamos uma estirpe de mutantes. Ícones, imagens poderosas, reverenciadas, adoradas, que nenhum desdém ou condenação crítica pôde deter. Fizeram-no com muito pouco: imaginação. Depois, passados 50 ou 60 anos, o cinema tomou-os como seus. A tecnologia permitiu-o. E fizeram-se filmes com tecnologia state of the art, com centenas de milhões de dólares por obra, com a crème de la crème do star system. Uma indústria cultural começou no doméstico do-it-yourself, a outra continua-a no mais ambicioso studio system.

Mantenhamo-nos próximos da crítica, mas ligeiramente ao lado. Falemos da paródia auto-reflexiva. Com ela podemos amenizar as acusações de fanatismo eufórico, de escapismo inconsciente, de absentismo crítico. A paródia é uma das estratégias que tem atravessado muita da produção cultural recente e na banda desenhada tem acontecido o mesmo. Em certos casos, através da sobrecarga dos traços de comédia e burlesco de personagens e situações; noutros, através de uma prática muito aguda de revisão e derisão das convenções e valores prevalecentes. Temos então uma propensão para a brincadeira, até para a zombaria e mesmo para o escárnio, e temos uma propensão para o distanciamento crítico e adulto, para o cepticismo e a rejeição. Obras e filmes como Watchmen, Wanted ou Kick-Ass tal atestam.

Podemos talvez descrever um arco na história dos super-heróis que se desenha entre o tom leve, ligeiro, voluntarioso, quase ingénuo das primeiras histórias (golden age), e o tom grave e sério da maioridade artística recente (o que se convencionou designar por modern ou dark age). A confirmar-se esta hipótese quase poderíamos encontrar nela a simetria dos géneros: entre a depreciada comédia, que toma a existência e o mundo como brincadeira, e o prestigiado drama que faz da reflexão profunda sobre o sofrimento e as suas catarses o tema mais comum. Encontrar-nos-íamos então nesse percurso ao mesmo tempo cínico e defensivo que alimenta uma certa forma de preconceito: à arte convirá mais o choro que o riso. Daí que os heróis tendam a encontrar num incidente trágico o suplemento de verdade que os motiva e, de algum modo, humaniza, o qual juntam à gravidade política, ontológica, subjectiva ou filosófica de onde advirá a maturidade intelectual de um ideário ou de um imaginário.

É isso mesmo que encontramos no talvez mais importante argumentista da idade moderna dos comics, seguramente um dos mais cultos e conscientes: Alan Moore, autor de alegorias, distopias e elegias como V for Vendetta ou Watchmen. Mas se a sua obra não recusa um dos temas mais comuns da banda desenhada, a violência, é contudo na obra de Mark Millar e nas respectivas adaptações que este ressurge ou se impõe com maior acutilância. Em comics e filmes como Wanted ou Kick-Ass encontramos a violência como hipérbole e como paródia. Ela já não se ancora no real. A sua representação, de tão exagerada, torna-se gráfica, virtual, simbólica - em última instância, ridícula. Ora, é esta evidência retórica da violência que nos pode proteger contra o risco sempre assombrado, mas nunca atestado, da mimetização. Porque a violência é aqui já não da ordem do ultrajante ou meramente do grotesco, mas antes, e paradoxalmente, da evidência sincera da paródia. Esta evidência retórica e caricatural faz dela o comic relief do maniqueísmo que estas histórias não recusam. A violência é aqui já só imagem e espectáculo. Não a violência do crime ou da guerra, da dor ou da política, mas a violência meramente icónica (logo codificada), exorbitada (logo irónica), ritualizada (logo abstracta). Claro que ela não se ausentou. São heróis e arqui-inimigos que se confrontam, mas já não em nome do bem ou do mal político, ontológico ou social; antes, do bem e do mal como avatares-cartoon sem alma dorida. Como se o voluntarismo e o optimismo quase infantil que encontramos nos heróis fundadores do género cedesse lugar a um cinismo auto-reflexivo e paródico típico da idade contemporânea.

Do hedonismo

Identificámos a ficção científica e o fantástico como os géneros fundamentais em que se enquadram as histórias de super-heróis. E parece-nos possível, a este propósito, traçar um duplo percurso: o fantástico conduzir-nos-ia ao passado, mesmo que de um passado mítico e efabulado se trate. A ficção científica aponta-nos ao futuro, mesmo se nos confrontamos com um devir perpetuamente adiado ou equivocado. A ligação à magia e à religião num caso, à ciência e à tecnologia no outro, parecem ajudar a consolidar essa ideia. Teríamos então as histórias de super- heróis como uma espécie de pivot a partir do qual se multiplicam anacronias. Essa espécie de duplo stargate, de portal da imaginação, poderá explicar o escapismo popular destes filmes.

Quando nos apontam ao futuro, p odemos entender que a projecção utópica, mais evidente ou mais subtil, se inscreve no imaginário. O destino da metrópole ou do país, da humanidade ou do planeta, da vida ou do universo apresenta-se frequentemente como pretexto narrativo de pendor mais ou menos apocalíptico - um apocalipse natural, nuclear, cósmico, não interessa a sua causa, dinâmica ou dimensão. Note-se porém que, curiosamente, no que respeita às personagens inscritas num cenário futurista, os heróis da idade cibernética dos últimos anos não originam na BD, mas antes no cinema, de que são exemplo Terminator ou Robocop (ainda que possamos filiá-los em Iron Man e noutros robots dos comics). Em direcção inversa, muitas vezes as histórias remetem-nos para situações ou, sobretudo, personagens do passado, de um tempo mítico, alegórico, muitas vezes folclórico, mesmo sobrenatural ou até lírico. Como se uma idade de ouro imaginária, e do imaginário, nos fascinasse pelo tom onírico, fantasioso ou vigoroso das personagens que propõe. Neste bestiário mágico-tecnológico encontramos, então, robots e hologramas, monstros e divindades. Avatares heterogéneos que podem cruzar-se: Thor e Iron Man lutando lado a lado.

Existe igualmente uma dimensão política muito forte - em chave mais alegórica ou mais documental - nestas histórias. De modo vincado, temos a figura do Capitão América, esse super-soldado criado deliberadamente, em 1941, com o objectivo de combater as forças do Eixo. Tudo nele é de uma retórica política evidente e reiterada. De um modo mais alegórico temos a história crepuscular de super-heróis que é Watchmen onde os vigilantes são proscritos da sociedade como se constata no epítome do filme: who watches the watchmen? Mas poderíamos falar igualmente da saga X-Men, que coloca como eixo de reflexão e leitura central a questão da diferença, da discriminação, da alteridade. Ou evocar a alma quebrada de Batman, o justiceiro sempre no limiar entre a violência justa e a violência hedonista. Tratam-se de personagens, histórias, livros ou filmes que nos implicam - mesmo que de modo maniqueísta - em escolhas de valores e mundividências várias.

A mundiviência política de escala desdobrada (o bairro, a cidade, o país, o continente, o universo) espelha-se na galeria de figuras que, mau grado a sua vastidão, pode ser unificada sob um preceito: uma nova classe, superior, sobre-humana. Se quiséssemos ver aqui uma projecção da luta política de classes cruzada com a luta moral entre o bem e o mal, bem que o poderíamos fazer: super-heróis e super-vilões constituiriam uma espécie de nova aristocracia, uma classe um nível acima do cidadão comum, dos mortais (da ordem do superlativo e do angelical são eles). Depois dos santos, dos imperadores, dos guerreiros, da burguesia, da nobreza, dos gentlemen, dos moguls, dos capitalistas, dos tycoons, teríamos os super-heróis a reintroduzir a lenda, a epopeia e a monumentalidade no nosso quotidiano. Podemos ver o kitsch a macular o majestático ou a gravitas ultrajada pelo camp como sinais de uma anestésica indústria cultural, de uma inebriante sociedade do espectáculo ou de uma indistinta pós- modernidade. Ou, em alternativa, podemos ver apenas a dinâmica poiética em funcionamento pleno, indiferente a purismos iniciáticos ou elitismos exclusivistas, tecendo malhas épicas com fragmentos eruditos e ícones plebeus, colocando em pedestais glorificadores figuras populares que reencarnam a grandiosidade heróica de outros tempos. A espessura hermenêutica pode ser ténue na sua aparência e a gratificação demasiado fulminante, mas não há como negar o profundo apelo destas narrativas que, por estratégias múltiplas (adaptações livres, fiéis ou literais) são levadas da euforia em quatro cores dos livros ao espanto digital dos filmes.

A constatação de que o proletário, o bucólico, o ascético, o diplomático ou o documental praticamente estão ausentes destas histórias poderia constituir um outro pretexto de inquietação e reflexão sobre a polaridade política/ hedonismo. O proletário não será uma figura social ou uma categoria política de eleição nestas histórias por dois motivos: por um lado, porque os comics surgem num contexto de indústria (cultural); por outro, e decorrente do primeiro, porque surgem num contexto cultural e ideológico capitalista. O bucólico estará ausente porque as cidades e as metrópoles ao longo do último século se tornaram pontos de agregação e confluência de multidões em busca de oportunidades ou de uma vibração que o campo não pode proporcionar (daí que Clark Kent troque a agrária e lenta Smallville pela terciária e frenética Metropolis, lugar perfeito para flirts, perseguições e lutas); é nesse contexto urbano que surge uma cultura juvenil, tecnológica, libertária, evasiva, dinâmica. O ascético está ausente (mesmo se o treino de Batman ou Daredevil dele não abdicam) porque existe em todos nós uma propensão para o optimismo mais temerário, para o voluntarismo mais audaz, para a acumulação e o consumo, que nos acompanha desde os sonhos de criança e em que tudo, por um passe de mágica, parece possível. O diplomático está ausente por vários motivos: porque a luta é da ordem do maniqueísmo, da incomunicabilidade e do inegociável; porque a vasta amplitude dos conflitos e a agressividade dos contendentes não permite o diálogo. O documental está ausente porque o storytelling - e, antes de mais, o storytelling ficcional - se tornou a fórmula, o hábito, o molde onde toda a tradição literária, cinematográfica ou televisiva americana (e, contiguamente, ocidental) tende a integrar-se.

Concluindo: a efabulação antes ou acima do facto; o imaginado antes do real; a ficção antes do documentário - estes são os princípios de uma tradição que, se perde em prestígio erudito, ganha em adesão popular. Os comics e os filmes que estes originam são disso óptimo exemplo. As adaptações continuarão a multiplicar-se e a acelerar: com os meios tecnológicos cada vez mais sofisticados e flexíveis e com os fãs cada vez mais determinados, o período que medeia entre a publicação do comic e a sua adaptação cinematográfica tem sido cada vez mais curto e a audiência cada vez mais vasta. Uma idade de ouro, parece-nos.

Luís Nogueira

Luís Nogueira dirige a licenciatura em Cinema da Universidade da Beira Interior, onde é professor auxiliar no Departamento de Comunicação e Artes.
Lecciona várias unidades curriculares como Géneros Cinematográficos, Laboratório de Guionismo, Montagem, História do Cinema ou Teoria dos Cineastas.
Doutorou-se com a tese ‘Narrativas Fílmicas e Videojogos. Articulações e dissensões’. A dissertação de mestrado denomina-se “Violência e Cinema. Monstros, soberanos, ícones e medos’.
Publicou manuais (disponíveis em livroslabcom.ubi.pt) e outros textos sobre cinema (bocc.ubi.pt).