International Journal of Cinema

ARTIGOS | ESSAYS
O CONTRIBUTO

DO CINEMA NO TRABALHO DE ALGUNS
ARTISTAS PLÁSTICOS
de
Chuva Vasco
O CONTRIBUTO DO CINEMA NO TRABALHO DE ALGUNS ARTISTAS PLÁSTICOS
de Chuva Vasco

Sobre a escolha do tema recaiu a minha formação em artes plásticas, por essa razão, o artigo relaciona de forma sintética, alguns artistas plásticos com o cinema. Trata-se um trabalho que não se encontra findo e que poderá, no futuro, desmultiplicar-se em outros mais, não só explorando com especificidade o trabalho de cada artista tratado, mas também expandindo-o para aquilo que de mais recente se faz em termos de artes plásticas, seja no campo da vídeo arte, performance, happening, ou qualquer mixed media. Desse modo, qualquer prolongamento deste trabalho, enquadrar-se-ia nas relações que se têm vindo a estabelecer entre a arte, a ciência, e a tecnologia, em todas as suas valências, e nas suas possíveis ligações ao cinema.

Vastas obras estão disponíveis para compreender as relações entre artes plásticas e cinema, por exemplo, “Arts Plastiques et cinema” de Sébastien Denis, mormente os IV e V capítulos.

É incerta esta relação arte-ciência-tecnologia, do mesmo modo como é impreciso apontar um caminho para esta sinergia. A arte renova-se a cada dia, fundamentalmente porque também a cada dia se actualizam as novas tecnologias, de todo o modo, uma coisa é certa, a arte continuará a persistir ao traçar a sua vereda, por essa razão, não me parece correcto apontar um destino, ou uma tendência para esta área de investigação, não sem antes estarmos num presente, actualmente futuro, para podermos avaliar todos os contextos possíveis que giram em torno da esfera artístico-estética.

Estando a desenvolver investigação de pós-doutoramento em arte telemática, procurarei sempre que possível direccionar estudos para o campo do cinema, podendo inclusivamente vir a criar projectos que se venham a constituir como fundamentais para o desenvolvimento do meu trabalho.

Abstract

There are many artists who have through the cinema, the raw material for their work. Cindy Sherman, Kendell Geers, Douglas Gordon, Pierre Huyghe and John Stezaker are just some examples of artists who have used the cinema as an element to the objectivity of its productions, whether they can be installations or simple still film. What moves these artists? What is in common between them? The cinema is decoded and is reconsidered its essence, to occupy a new place in the scene of action phenomenological plastic. It is in this transmutation, some will say pastiche, is that the concept of art expands, and it is by this way that we find in the cinema new procedures of influence for the social, political, or cultural demand.
The contact with these works correspond to a revival as it appears in the spectator as an adulteration of a primary experience, the cinema itself, when one has contacted him. In the deconstruction of filmic simplicity, complexity corresponds to a new creation, a result of customary idiosyncrasies that fill the artist’s world in particular and the art in general.

Keywords: Cinema, Film still, Remake, Plastic art, Creation.

Introdução

O pastiche, “L.H.O.O.Q”, que Marcel Duchamp (1887-1968) propôs em 1919 a partir da Mona Lisa, é uma releitura da obra de Leonardo da Vinci (1452-1519). Por detrás do aspecto lúdico e irónico desta releitura, coloca-se a problemática da apropriação. O mesmo se tem passado com outras obras quem têm por base, não uma pintura, mas sim a expressão cinematográfica.

A interacção entre o cinema e as artes plásticas não é recente, o cinema experimental influenciou nos princípios dos anos vinte, artistas como Man Ray (1890-1976), Fernand Léger (1881-1955), Hans Richter (1888-1976), Marcel Duchamp (1887-1968), ou ainda, os filmes de Andy Warhol (1928-1987) no princípio dos anos sessenta. É precisamente a partir dos anos sessenta que as relações entre cinema e artes plásticas se fortalecem. Os artistas, investiram muito no cinema, sobretudo devido ao acesso facilitado às novas tecnologias que na época começavam a surgir, mormente o vídeo. Alguns artistas viram então no cinema, uma forma híbrida manipulável capaz de produzir novas realidades. Mas a apropriação do cinema para o plano das artes plásticas acentua-se a partir dos anos noventa, porque se trata de um imaginário que os artistas partilham como espectadores. Quer pelos efeitos visuais e sonoros que provocam, quer pelos processos de montagem (combinação de planos retirados de filmes - film still; alternância de cenas originais e cenas rodadas por amadores, etc.), eles exploram uma matéria plástica, recompõem uma ficção. É assim, que a partir do cinema, a crítica estético-artística toma lugar.

Esta interacção aboliu fronteiras e leva o fruidor a reflectir sobre a representação da imagem, a sua narração, a sua plasticidade. Qualquer procedimento artístico que joga com a imagem, lembra-nos que o cinema é mágico e cria um espaço que solicita vários sentidos ao fruidor.

O film still

O termo inglês film still refere-se a imagens extraídas de um filme, e corresponde a uma imagem (fotograma) que compõe a série de um segundo fílmico. Este tem a sua origem no cinema clássico (c. 1912), prolongando-se até ao período áureo de 1960.

Inicialmente, esta prática é considerada como um registo proveniente da montagem de algumas cenas relevantes do filme para a sua comercialização. Trata-se portanto de uma montagem fictícia, que obrigava à encenação das situações mais importantes, implicando todo o rigor necessário à rodagem de um filme (variações na composição, ângulo da câmara, iluminação, maquilhagem, etc.), onde se nutria uma preocupação pelos detalhes visuais. Só mais tarde esta prática deixa de ser utilizada com o intuito comercial e passa a ser utilizada por alguns artistas plásticos. Por um lado, recorrendo apenas ao crop do filme para se extrair uma imagem, sem recorrer a qualquer planeamento para a elaboração da imagem pretendida, por outro, elaborando novas narrativas em torno da imagem cinematográfica original.

A transformação do filme em film still

O facto de se proceder à recolha de uma imagem e à sua posterior ampliação, o artista adultera a imagem original, que por sua vez já não corresponde efectivamente à realidade primeira, tal como Christian Metz, sublinha: «Un gros plan de revolver ne signifie pas “revolver” (unité lexicale purement virtuelle), mais signifie au moin, et sans parler des connotations, “Voici un revolver”. Il emporte avec lui son actualisation, une sorte de “voici”» (Metz, 1964:76). Também a este respeito, Alexandre Santos refere: «(…) a fotografia longe de ser acesso objectivo ao real, é acesso a uma parte ínfima deste. É permanência indicial de algo que esteve ali, mas que não dá ao espectador mais do que esta informação» (Santos, 2003:17). Portanto, no momento em que se procede à extracção de um excerto fílmico estamos a acrescentar outras particularidades, que irão caracterizar o film still. A ampliação de uma determinada cena fílmica, acentua o grão e pode promover a desfocagem. Para Barthes, esta situação, associada ao congelamento da cena, elenca novos princípios simbólicos e sígnico, mas fundamentalmente novos significados, longe dos propostos pelo cineasta. A percepção deste novo tipo de realidade é mais do que um processo de amplificação da objectivante capacidade do órgão visual humano, ela é concentrada num único momento, a partir da qual formulamos uma nova narrativa baseada em contextos vivenciais.

O film still torna-se uma nova manifestação de imediatismo do acontecimento icónico, já não correspondendo à realidade primeira, porque como Peraya e Meunier (Peraya; Meunier: 1993:56), questionando a similitude da imagem, nos sublinham, o melhor (verdadeiro) signo icónico de uma dada representação é a própria realidade. Assim, para Eco, a fotografia é uma questão de “graus” (Eco, 1970:26) onde se vai do mais ao menos, ou segundo Moles, uma espécie de “escala de iconicidade” (Moles; Rohmer, 1981), onde para além das oposições extremas, há lugar a meios-termos.

Duas realidades, um analogon

Qualquer film still estará no domínio do instante e do isolado e consequentemente transporta apenas a sua pessoalidade. E a sua pessoalidade será a circunstância de uma temporalidade. Trata-se de uma dupla temporalidade, porque não podemos esquecer que estamos indirectamente a contactar com a matéria-prima que lhe deu origem. Assim, duplicidade é sinónimo de reprodutibilidade.

No sentido de Pierre Schaeffer (Schaeffer, 1970), podemos dizer que as imagens fotográficas são “máquinas para comunicar”, porque correspondem àquilo que hoje apelidamos de “media tradicionais”. O seu conceito de “máquinas para comunicar” implica a ideia desses meios serem uma forma de simulacro, que ocupam o lugar da realidade.

A fotografia pode ser considerada como o veículo pós-moderno por excelência, porque baseia-se num conjunto de paradoxos que são privilegiados na estética e no questionamento em torno da função da arte e da representação. Jean Baudrillard (Baudrillard, 1976:85-89) fala-nos de um “simulacrum industrial”; para ele, a fotografia não tem heranças, é desprovida de passado, mas por isso mesmo e pela força do novo e da novidade, faz surgir uma nova geração de signos. Para ele, a fotografia é técnica e consequentemente passível de ser reproduzida, perdendo toda a singularidade do objecto artístico e passando a participar num mundo de múltiplos visuais. Esta referência a Baudrillard remete-nos obrigatoriamente para o ensaio de Walter Benjamin (Benjamin, 1992:75-113) acerca da reprodutibilidade técnica que eleva a fotografia a elemento transmissor e que conduz à democratização da arte; por outro lado, considera que a técnica da fotografia, apesar de permitir a sua reprodutibilidade, também é um meio produtor de novas significações e novos sentidos. Deste modo, a fotografia perde o estatuto de originalidade e autenticidade estética necessárias ao consumo democrático. A representação fotográfica vem permitir ao observador ter do objecto uma visão renovada, imprimindo-lhe pois, desta forma, uma nova significação.

Ainda segundo Benjamin, este processo vai permitir a alteração das mentalidades sociais, com o objectivo de uma renovação da experiência estética e da chamada “crise contemporânea”. Acontece porém, que o processo de criação de film still não democratiza a arte, antes pelo contrário a hermetiza. O film still não oferece um melhor acesso ao filme, nem é esse o seu intento e tampouco contribui para a compreensão dessa imagem fotográfica. A fotografia não existe para nós antes de a conhecermos e por isso, o conhecimento da fotografia advém da percepção que se teve dela. São processos vivenciais que desenvolvem em nós um confronto com a realidade, de modo a estabelecer uma determinada iconicidade e que tem como principal função, o reconhecimento dessa mesma realidade, o voltar a conhecer, conhecer de outro modo. A mimese fotográfica é ilusória e transformadora. Ela induz-nos a participar num outro mundo, o da representação, ou melhor dizendo, da reapresentação, mas sem antes o termos percebido na sua elementaridade. Estaremos então perante um novo mundo, sempre que haja qualquer actividade de representação porque, ao “espelhar-se” a realidade natural, estamos certamente a desenvolver um mecanismo de conformidade, em que essa realidade é adulterada, ainda que discretamente.

Cindy Sherman - “Untitled Films Stills” (1977-1980)

Na sua série de Film Stills (cerca de 69 fotografias) realizada entre 1977 e 1980, Cindy Sherman (1954- ) retoma o film still da década de cinquenta relacionada com os filmes da série B. O seu trabalho desenrola-se em torno da mulher estereotipada pela sociedade, e das consequências da opinião preconcebida e comum dessa sociedade, imposta à colectividade feminina. Ela pretende que as suas imagens sejam contributos para momentos de reflexão, não em torno de si, mas sim das pessoas a quem elas se dirigem.

Sherman, apelidada de “mulher plural”, encarna vários papéis, actuando sobre a sua fisionomia e planeando a composição. Ela declina uma multiplicidade de auto-retratos colocados em cena, onde em cada momento encarna uma personagem diferente saída da cultura popular. Ela interroga-se sobre a noção de identidade. Como é que a nossa sociedade e os modelos que veiculam o cinema ou os media, produzem imagens que vão alimentar a nossa identidade? As representações de Sherman não pertencem ao mundo da nossa compreensão, mas antes ao imaginário individual, sendo que este será sempre baseado em reconstituições imagéticas provenientes dos tiques impostos pelas diversas sociedades e fundadas em temas recorrentes dessas sociedades, tais como a moda, o sexo, o desejo, a sedução, a perversão, ou a beleza, adstritos aos clichés da loura, mulher frágil, vulnerável e consumidora, e nunca projectadas com total objectividade, que possa permitir uma identificação com objectiva coerência. Quer isto dizer que as suas representações estão sempre afastadas de qualquer idealização convencional. Perante estas imagens, o espectador é livre de construir as suas próprias narrativas. Ela suscita a participação, deixando entender pelo carácter deliberado das poses que ela é objecto do olhar de qualquer um. A obra “Untitled Film Still”, implica não somente dois olhares, o nosso e o da máquina fotográfica, mas faz alusão à presença de uma outra pessoa que partilha o mesmo espaço que Sherman, talvez por isso o seu olhar é quase sempre desviado da máquina fotográfica, como que para introduzir mais qualquer coisa externa à cena, ou para estabelecer uma conexão indirecta com o espectador, fazendo-nos lembrar alguns grandes mestres da pintura, como Diderot (1713-1784) ou d’Alembert (1717-1783).

“Untitled Film Still” adopta na sua essência o mesmo procedimento do hiper-realismo iniciado nos anos sessenta. Ao nível das artes plásticas é na escultura hiper-realista que encontramos o melhor continuum da realidade. Ela faz parte do mundo que nos rodeia e é uma extensão artificial dessa mesma realidade. A sua recepção não levanta à partida qualquer tipo de problema, visto que a obra se apresenta de um modo visível, muito concreto. Mas, apesar da sua imediatidade sensorial, poderá surgir alguma dificuldade na sua compreensão. Não nos referimos evidentemente ao que é mais superficial, mas sim ao âmago da obra, quer dizer, a sua orientação política, social, económica, etc.

Muitas obras hiper-realistas reflectem tiques e atitudes de uma sociedade, mas estas orientações estão de tal modo impregnadas no funcionalismo social, que dificilmente nos apercebemos delas. Cindy Sherman percebe que o humano não consegue captar todos os pormenores da realidade que o envolve, daí que as suas obras revelem comportamentos e tiques anteriormente escondidos. Elas provocam uma nova sensação, já que representam (ou reproduzem) a realidade com um rigor que originalmente a sensibilidade humana deixa escapar. Trata-se de aperfeiçoar aquilo que apreendemos da realidade. As obras hiper-realistas acabam por ser um duplo da realidade, onde todos os preconceitos são abordados como frames de uma vida de “clausura”, que passa despercebida aos olhos das sociedades modernas, firmadas no tempo que passa a uma velocidade estonteante.

Sherman instiga o fruidor a olhar mais atentamente para a realidade envolvente, mas a sua obra, embora sugestiva, não é clarificadora. A causa da toma fotográfica está consideravelmente aliada ao acontecimento e às preocupações da artista, mas a clara razão para tal decisão fotográfica permanece oculta até ser evidenciada pelo seu autor. A série “Untitled Film Still” é portadora de mensagens e utiliza os mesmos mecanismos que os produtores de cinema para produzir arquétipos de mulheres, demonstrando a sua artificialidade, mas também a forma como elas veiculam uma identidade própria, com os seus valores, códigos, e por conseguinte a forma como elas nos influenciam.

As 69 fotografias da série “Untitled Film Still”, reportam-se a cenas de filmes sem nome, mas conexas a dimensões fílmicas bem conhecidas, como o cinema dos anos 40, 50 e 60, e aludindo a directores como Jean Luc Godart (1930- ), Antonioni (1912-2007), ou Hitchcock (1899-1980). Também a identidade das personagens encarnadas por Sherman não é precisa, mas lembram-nos estrelas como Sophia Loren (1934- ) e Marilyn Monroe (1926-1962). De um modo geral, todas as fotografias, que não são simples pastiches da imagem feminina, fazem referência aos modelos que influenciaram as mulheres do babyboom, como uma forma de reflexão sobre a identidade.

O facto da maioria dos filmes serem rodados por homens, obriga-nos a pensar que se tratam de representações masculinas sobre as mulheres e não representações de mulheres. Essas mulheres correspondem a papeis bem distintos, como a mulher fatal para o filme a preto e branco, a mulher carnuda para os filmes neo-realistas, a mulher sensual para os filmes da série B, etc.

Na obra “Untitled Film Still #48” (Figura 1) vemos Cindy Sherman vestida como uma adolescente dos anos 70 em pé, à borda de uma estrada. A sua mala pode significar que tenta escapar do seu lar. Ela evidencia uma situação perigosa, pois não estamos na posse dos restantes acontecimentos.

A perigosidade de uma boleia ou um cenário de atropelamento, é uma construção que realça um drama em potência. Substituindo a actriz, Sherman fala-nos da sociedade estado-unidense em que vive. Sob a capa de uma nova personagem ela esconde-se para se revelar de outra forma. Contrariamente a Orlan (1947- ) que trabalha sobre o estatuto do corpo na nossa sociedade contemporânea, programando a sua própria mutação, mudando de corpo e de imagem através de operações cirúrgicas, Sherman produz uma mutação visível, mas que apenas pode ser compreendida por quem tenha a capacidade de se olhar no espelho imaginário que nos apresenta e a sensibilidade de se reconhecer nele próprio.

Fig 1 Cindy Sherman, “Untitled Film Still #48”, 1979. Fonte: http://www.masters-of-photography.com/S/sherman/sherman_48_full.html

A imagem sugere um fluxo narrativo, parecendo descrever que algo aconteceu ou que vai brevemente acontecer.

Nesta fotografia Sherman, dá-nos a sugestão de um momento psicológico, resultando num sentimento de inquietação ou melancolia.

O remake

Próprio do universo cinematográfico, o termo remake e a sua prática, investiram grandemente no domínio das artes plásticas, mormente no campo da vídeo arte. A ideia de produzir um filme ou uma obra que já existe constitui ainda hoje uma prática válida e comummente aceite pela crítica artística.

Um remake é coisa distinta de cópia, pois aquele reconhece a identidade do original e espelha-a em procedimentos artísticos múltiplos e dinâmicos. Nos remakes, a referência ao cinema é imediatamente identificável, mas o manuseamento técnico do filme como por exemplo a dobragem, a sobreposição, o esticar ou encolher no tempo, etc., fazem deste uma matéria prima para todas as experiências visuais e sonoras, de modo a criar um novo espaço, fornecendo ao fruidor uma série de imagens estéticas surpreendentes.

A sobreposição de realidades em Pierre Huyghe

Pierre Huyghe (1962- ), l’enfant terrible, pertence a uma geração de artistas que se associam aos media e que depois dos anos noventa trabalham sobre cinema. Pierre Huyghe toma por modelo os grandes clássicos do cinema, extraindo-os do seu contexto para lhes dar um novo sentido.

Em “Remake” (1995) (Figura 2), Pierre Huyghe retoma “Rear Window” (1954) de Alfred Hitchcock e durante dois fins-de-semana, dois actores improvisados rodam as cenas do filme, plano por plano, numa versão home-made e baseado nas recordações que têm do original. Estamos entre a recepção e a transposição de uma obra ao ecrã, em que a obra transforma um acto perceptivo numa forma mediática, explorando a significação das imagens. Para muitos, este filme é um mau remake da obra de Hitchcock. Se a estrutura técnica e narrativa do filme é respeitada, os actores, não profissionais, surgem sem expressão, pois não deixam transparecer nenhuma emoção, tropeçando por vezes nas palavras, e enganando-se no texto, assim como os gestos não têm convicção. Com “Remake”, Huyghe produz in absentia, uma citação tácita de “Rear Window”, pois o filme original apenas existe, na medida em que os espectadores já com ele tenham contactado e nesse sentido podem estabelecer um termo de comparação.

Ele toma a obra de Hitchcock como uma arquitectura para a construção de uma narração. O corte dos planos de “Remake” reproduz os do original, transpondo-o para um universo sem qualidade, banal, com meios técnicos reduzidos à sua mais simples expressão que mais parecem ter sido utilizados com urgência.

Já em “Ellipse” (1998), Pierre Huyghe retoma o clássico de Wim Wenders (1945- ), “The American Friend” (1977), e orienta o seu trabalho sobre uma sequência precisa: o actor principal, Bruno Ganz (1941- ), a atravessar uma ponte sobre o rio Sena. Porém, a imagem apenas é captada quando o actor entra na ponte e quando sai desta, ficando de permeio, a amputação de uma sequência, que obriga à reflexão. 21 anos mais tarde, contactou o mesmo actor, vestindo-o com o rigor do filme original e grava o momento em falta, colocando-o posteriormente numa instalação entre as duas imagens iniciais que deram origem ao projecto, formando um tríptico cinematográfico e criando links entre realidade e ficção, entre passado e presente, entre arte e vida.

Neste caso, o filme produzido por Huyghe, reúne os elementos separados e torna aquela criação inteligível.

“Ellipse” opera uma descondensação do tempo diegético, a activação de um tempo sugerido e não vivido. Huyghe trabalha sobre o efeito que produz sobre o fruidor, o diferido ou a diferença entre as situações que misturam ficção e realidade e por conseguinte, realçando a ideia de que a memória tem como característica, o atraso.

Fig 2 Pierre Huyghe, “Remake”, 1995. Fonte: http://search.it.online.fr/covers/?cat=1&paged=53

Douglas Gordon e a sedução por slow motion

Em 1993, Douglas Gordon (1966- ), fascinado pelo cinema, realiza uma obra intitulada “24 Hours Psycho” (Figura 3), que é um remake do filme “Psychose” (1960) de Alfred Hitchcock. Douglas Gordon abranda o filme de modo a que este dure 24 horas em vez dos 109 minutos originais, retirando-lhe ainda a banda sonora. Esta proposta tem implícita a ideia de democratização da arte, dado que qualquer pessoa poderia adquirir o filme original e visualizá-lo tal como em “24 Hours Psycho”, sem sequer haver necessidade de pedir autorização ao artista (Wainwright, 2002:1- 4). Isto leva-nos a pensar que o ponto de partida para a criação de “24 Hours Psycho”, pode ser qualquer filme “Psychose”, seja em que suporte for. Esta situação compromete igualmente, tal como “Remake” de Huyghe, a noção de autor (Barthes, 1987:49-53) como criador único e original da obra. Ambas as obras (mas fundamentalmente “24 Hours Psycho”), são reproduções quase intactas, por conseguinte, torna-se evidente que estas obras desafiam os direitos de autor. Gordon utiliza portanto uma obra cinematográfica no sentido de criar a sua própria obra.

Dado que a sua obra utiliza unicamente o filme de Hitchcock e um dispositivo de projecção, a quem pertence o discurso de “24 Hours Psycho”? Gordon afirma estar satisfeito por manter um papel secundário por trás da figura de Hitchcock (Bourriaud, 2003:85). E o sentido do filme deve necessariamente passar pelo seu autor? O texto, se quisermos, o filme, pode nos levar a várias interpretações, das quais a obra de Gordon é apenas um exemplo, portanto, podemos inferir que não é necessário passar por Hitchcock para definir o sentido que queremos dar a “Psychose”.

O abrandamento e a ausência de som elimina o medo e o suspense, modificando consideravelmente a nossa percepção do filme e direcciona a atenção do fruidor para as imagens que se sucedem uma após outra.

Gordon recusa qualquer expressão pessoal, e reenviando o espectador para uma experiência e um contexto individual, advoga um espectáculo-experiência. Assim, o que se revela de maior importância não é tanto quem é o autor da obra, mas sim a definição de um sentido para a mesma. Ele radicaliza a imagem e joga com a gramática visual. Apoiando-se sobre a familiaridade das sequências que extrai do seu contexto, ele desloca a atenção do espectador da acção sobre a estrutura interna das imagens.

Tal como Huyghe, Gordon também evoca a importância do papel da memória. A obra “Psychose” é reactualizada no fruidor que já o conhece e portanto, quem viu o filme pode antecipar o que se passa. Dando o mesmo sentido intertextual a “24 Hours Psycho”, Gordon não procura destruir o filme, mas sim provocar uma nova leitura comparada com o original.

Fig 3 Douglas Gordon, “24 Hours Psycho”, 1993. Fonte: http://www.artperformance.org/article-26614136.html

Kendell Geers - A passividade da violência

A obra de Kendell Geers (1968- ) desenvolveu-se sob a forma de instalações, acções, vídeos, tudo num contexto onde a violência é quotidiana: a sociedade sul-africana do apartheid. O seu trabalho interroga as formas de violência e de repressão da sociedade de hoje. Na sua obra “Title Withheld (shoot)” (1998-99), dois ecrãs colocados frente a frente projectam excertos de cenas de acção de filmes americanos dos anos oitenta e noventa (e.g. Scarface, A Bullet in the Head, Terminator…), que são montados numa sequência de quinze minutos. Cada excerto escolhido apresenta um homem disparando numa vista de frente, e em plano relativamente fechado. Estando os ecrãs colocados frente a frente, o espectador tem uma sensação absurda, porque as imagens estereotipadas revelam de antemão que se trata de cinema, mas simultaneamente ameaçadora, porque as balas resultantes da troca de tiros viajam virtualmente no espaço onde se encontra o espectador.

Deste modo ele explora em permanência os limites sociais, para os interpretar de uma forma artística muito pessoal. Kendell Geers, o “terrorista”, reivindica a necessidade de tomar posição, explorando e criticando o nosso mundo de uma forma frontal e alertando para os problemas que podem advir da alienação dos objectos, das imagens, e das situações do nosso quotidiano. Centrado sobre as problemáticas morais ou políticas, Kendell Geers interroga- se sobre o contexto da arte, os seus modos de actuação e os seus efeitos, sobre a instituição e os seus actores.

Os seus vídeos são um acto militante contra a violência. Ele constrói uma crítica de omnipresença e banalização da violência na sociedade. Geers combate a passividade do espectador, surpreendendo-o com criações violentas. Na presença dos seus vídeos, frequentemente montados em velocidade mais elevada que o normal, e aumentando substancialmente o som, o espectador deixa de ter defesas e tende a sentir-se destabilizado.

John Stezaker - O stillman cirúrgico

Realizadas a partir de imagens encontradas nos magazines vintages, de fotografias de cinema, retratos de actores ou de postais, as colagens de John Stezaker (1949- ) (Figuras 4 e 5), caracterizam-se desde os finais das década de sessenta por uma certa brutalidade de corte. Ele disseca velhos retratos a preto e branco saídos de filmes dos anos cinquenta, e combina-os frequentemente com imagens que não têm nada em comum e que por vezes se articulam em torno de uma oposição. As imagens são sobrepostas ou justapostas, seguindo diferentes eixos de corte ou combinação, através de procedimentos que nos parecem totalmente arbitrários.

A colagem em Stezaker não pretende procurar um espaço comum, mas pelo contrário trabalha uma certa heterogeneidade. Ele expõe as “cicatrizes”, sem se preocupar com o facto do processo de criação se tornar evidente. Os defeitos tornam-se efeitos. É precisamente neste desvendar do processo que reside o interesse da obra de Stezaker. O limite entre duas imagens organiza um espaço que ressalta para qualquer fruidor, constituindo- se por isso, um espaço em si. A fruição é portanto demorada na análise da incoerência das imagens, e nas “ruínas” que se revelam nesses limites.

Perante a obra de Stezaker deixamo-nos levar quer pelo surrealismo das imagens criadas, pela beleza da paisagem, pela beleza perdida das caras das personagens, quer ainda pela beleza cirúrgica que a obra final ostenta. John Stezaker repara, transforma e embeleza. Ele dá uma segunda vida às imagens e encaminha-nos para um universo próximo da quarta dimensão.

Fig 4 John Stezaker, “Pair”, 2007. Fonte: http://www.theapproach.co.uk/artists/stezaker/

Conclusão

As várias criações expostas lembram-nos do que havíamos esquecido e das histórias que o cinema nos contou, e como todo o processo de memorização parece volátil numa sociedade que viaja no tempo a uma velocidade vertiginosa. Funcionam assim, como próteses sensoriais que despoletam em nós novos sentidos, novas realidades. Como vimos, cada artista explora o cinema de maneira diferente, nomeadamente no que diz respeito ao desenvolvimento do objecto em estudo, à composição da imagem, à sua narração, e à forma como ela é explorada no espaço. Porém, em todos vemos presente a ideia de obra aberta, enquanto material manipulável. Depois dos anos sessenta, cada geração de artistas estabelece relações muito específicas com a tecnologia, não somente como ferramenta, mas igualmente como processo de criação.

Fig 5 Mask XV, 1982. Fonte: http://www.theapproach.co.uk/artists/stezaker/

A faculdade de reprodução de obras arrasta a possibilidade, para os artistas, de as empregarem sem reticências como material para uma nova obra. A arte de reprodução mecanizada, assegura portanto, um certo desdobramento das obras que permitem a co-existência da obra original e de uma ou várias obras saídas da postproduction do original.

De todos os exemplos de remakes, é possível extrair elementos de diversidade e por definição não há simulacro absoluto. A ordem da repetição e da mimese diferenciada à qual pertence o remake é o da proliferação das singularidades, apesar disso, estas obras podem ser arrumadas sob a mesma prática geral do cinema real, mas remetendo-as para um espaço de exposição, o do “cinema de exposição” (Royoux, 1997).

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Chuva Vasco

Doutorado em teoria de arte pela Universidade de Aveiro.
Licenciado em Pintura pela Escola Universitária de Artes de Coimbra (EUAC).
Possui o curso de “Gestão das Artes” atribuído pelo Instituto Técnico Artístico e Profissional de Coimbra (ITAP).
Realiza actualmente pós-doutoramento em arte e tecnologia – Arte telemática.
Investigador Integrado do Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura (ID+, Aveiro).
Investigador do Centro Interdisciplinar de Investigação e Inovação (C3i, Portalegre).
Professor Adjunto convidado na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Portalegre.
Realiza desde 1999 diversas exposições nacionais e internacionais, vencedor de alguns prémios de artes plásticas.