International Journal of Cinema

ENTREVISTA | INTERVIEW
BÁRBARA

VIRGÍNIA - A PRIMEIRA REALIZADORA
DE UMA LONGA-METRAGEM, EM PORTUGAL
de
Wiliam Pianco
e
Ana Catarina Pereira
BÁRBARA VIRGÍNIA - A PRIMEIRA REALIZADORA DE UMA LONGA-METRAGEM, EM PORTUGAL
de Wiliam Pianco e Ana Catarina Pereira

Em 1946, num país de costumes abrandados por uma ditadura fortemente repressiva, que se prolongava há mais de uma década, uma atriz decide tornar-se realizadora. O seu primeiro filme estreia a 30 de agosto desse ano no Cine Ginásio, em Lisboa. Três dias sem Deus, de Bárbara Virgínia — de seu verdadeiro nome Maria de Lurdes Dias Costa — é uma adaptação da obra original de Gentil Marques, Mundo perdido, que chega a ser apresentada no I Festival de Cannes, a 5 de outubro do mesmo ano. Falar de Bárbara Virgínia é assim falar da História do Cinema Português e da ousadia de ser a única mulher a realizar um filme durante o período do Estado Novo.1

Do elenco de Três dias sem Deus fazem parte a própria Bárbara Virgínia, para além de Linda Rosa, João Perry, Alfredo Ruas e Maria Clementina. O filme é povoado de elementos fantásticos, recolhidos dos mitos e lendas tradicionais portugueses, centrando-se numa jovem, professora primária, contratada para lecionar numa aldeia da serra. Poucos dias depois da sua chegada ao incerto e recôndito local, Lídia é informada pelo médico de que irá ausentar-se, juntamente com o pároco, para se deslocarem à cidade: segundo a sabedoria popular, seriam “três dias sem Deus”. Nesse intervalo, a professora conhece Paulo Belforte, a quem os habitantes da aldeia acusam de ter um “pacto com o diabo”, por supostas tentativas de incêndio à igreja local e homicídio da própria esposa.

Do filme, restam 26 minutos de negativo de imagem, sem som, que se encontram no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), da Cinemateca Portuguesa, onde fora preservado em 1985. Praticamente desconhecida em termos de património cultural e histórico português, a obra de Bárbara Virgínia não tem sido objeto de análise e reflexão, tendo-lhe apenas Marisa Vieira (2009) dedicado a sua monografia final de licenciatura.3 Nela, a investigadora afirma que, após a exibição pública da longa-metragem, a realizadora apresentou um novo projeto ao Secretariado Nacional de Informação (SNI – entidade que aprovava e apoiava financeiramente as atividades cinematográficas realizadas em Portugal, durante o Estado Novo). Em 1952, a resposta obtida traduziu-se num pedido de adiamento do início das filmagens, por alegada falta de verbas: o projeto, centrado na vida e obra do poeta António Nobre, acabou por nunca se concretizar.

Segundo Marisa Vieira, Bárbara Virgínia partiria para o Brasil a 2 de agosto de 1951, onde assina contrato com a Rádio Tupi e, mais tarde, com a TV Tupi (emissoras paulistas que, em 1957, lhe atribuem o “Prémio do teatro declamado”). Entre os anos de 1955 e 1957, chega a ser proprietária de um restaurante típico chamado Aqui é Portugal. A 15 de outubro de 1963, Bárbara Virgínia participa num espetáculo, no Teatro Municipal de São Paulo, e despede-se dos palcos. Casou, em seguida, não tendo voltado a representar. O seu percurso profissional terá prosseguido na rádio, mas também na literatura, através da colaboração com a editora católica Paulinas, onde publica dois livros: A mulher na sociedade e Poder, pode… mas não deve. No ano 2000, vivia em São Paulo, sendo estas as últimas informações a que Marisa Vieira terá tido acesso.

Tanto quanto sabemos, a realizadora permaneceu na mesma cidade até ao momento em que a pudemos visitar, em julho de 2012. Os esforços realizados para a contactar foram desenvolvidos por Wiliam Pianco, coautor da entrevista, então residente em São Paulo. Ana Catarina Pereira encontrava-se, no momento, a desenvolver uma pesquisa sobre o trabalho das mulheres cineastas em Portugal, no âmbito da sua tese de doutoramento. Ao conceder este que será um dos seus últimos depoimentos, a cineasta sofria já de alguns problemas de saúde e o seu estado era física e psicologicamente debilitado, como se poderá confirmar por algumas falhas no raciocínio e discurso. Considerou-se, por isso, necessário eliminar algumas das suas repetições.

No dia 7 de março de 2015, Bárbara Virgínia viria a falecer. A publicação da presente entrevista, devidamente autorizada pelos seus familiares, é a nossa homenagem.

Capa de número de jornal “O Século Ilustrado”. Imagem retirada do blogue de Paulo Borges, consultado a 24 de abril de 2013: http://pauloborges.bloguepessoal.com/90700/BARBARA-VIRGINIA-A-REALIZADORA-DE-TRES-DIAS-SEM-DEUS/.

Wiliam Pianco: Gostaria que nós pudéssemos conversar um pouco sobre a sua experiência com cinema... Sabemos que foi a primeira mulher a realizar uma longa-metragem de ficção em Portugal e que, depois disso, veio para o Brasil e trabalhou na Rádio Tupi e na TV Tupi.

Bárbara Virgína: Fui contratada pelo [Assis] Chateaubriand.

W.P: Pelo próprio Chateaubriand?

B.V: Pelo próprio Chateaubriand. Porque ele assistiu um espetáculo meu no São Luiz, em Lisboa. Eu formei-me em teatro e fui aluna do Alves da Cunha, que foi um dos maiores artistas portugueses. Eu tive a honra de ser aluna dele. Ele me quis muito bem, foi sempre um grande mestre e um grande amigo. E eu dizia p’ra ele: “olha, Maestro, eu gosto muito de trabalhar, de representar, mas sabe o que é que eu gosto? Para o senhor eu digo, porque sei que o senhor não vai fazer troça comigo, porque os meus colegas fazem troça. Eu quero ser realizadora, quero ser mulher que dirige cinema.” Ele sorriu e disse: “mania de mulher é mandar. Tu queres mandar.” Riu assim, não é? Mas acho que nem me tomou muito a sério. Ninguém tomava muito a sério...

Então acontece que eu dizia versos, mas nunca tinha pensado em ser declamadora. Aliás não tinha ainda assistido nenhum espetáculo de declamação. Nesse tempo nós tínhamos a Margarida Lopes de Almeida, que era considerada um máximo em declamação. E ela ia ter um espetáculo em Lisboa. Era uma senhora já, já tinha muita idade. E eu fui assistir ao espetáculo, achei muito interessante, muito bonito. Mas eu pensei: “eu queria dizer versos, mas não era assim.” Eu tinha a mania de achar que tinha de ser dito. A poesia moderna era para ser dita, não representada (passava a vida a dizer isso) ou declamada. Declamação é século XIX, século XVIII. Agora, século XX, XXI, não há declamação. Diz-se. Fala-se. O pior é que eu continuo com a mesma ideia. Foi assim. (risos)

W.P: Isso soou uma surpresa para a época?

B.V: Ah, na época foi uma surpresa... e até críticas muito desagradáveis antes de eu aparecer. Nós tínhamos um grande declamador que, se ainda estivesse vivo, continuaria sendo, que era o João Villaret. Além de eu ser amiga dele, eu o queria muito bem, ele era um senhor já na época. Eu tinha uma adoração por ele. Ele dizia versos que me tocavam. Eu achava lindo! Ele disse-me assim: “olha Bárbara, tens uma voz muito bonita. Tu podes perfeitamente dizer versos, declamar como eu.”. E eu: “aí João, pelo amor de Deus!”. Eu o tratava por “você”, como ele mandava. “Ah João, que horror! Que vergonha! Eu, dizer versos, como você?”. “Sim, se você estudar e disser versos, você vai aparecer assim...” (gesto com as mãos a indicar alta velocidade). Ele dizia isso, o João Villaret. Então, ele e a minha mãe é que me incentivaram muito a dizer versos em público. Eu não tinha coragem.

W.P: E nisso tudo você era bem jovem ainda.

B.V: Muito novinha: 15, 16 anos. Antes dos 15 anos, não. Eu estudava piano, estudava canto, estudava composição....

W.P: Toda essa formação artística...

B.V: Toda essa formação artística! Minha mãe era uma pianista fantástica, e, além disso, pintava muito bem. Era uma artista e adorava arte! Então quando eu comecei: “ah! Gosto tanto disso!”, ela logo perguntava: “Queres aprender?” Eu era filha única. Ela não pôde ter mais filhos. Então, tudo que eu tinha desejo de fazer, ela incentivava.

W.P: Uma dúvida que eu, como brasileiro e mais jovem, acabo tendo por conta da sociedade portuguesa nesse período de salazarismo; esse incentivo de sua mãe, não deveria ser comum mães incentivarem as filhas para a carreira artística...

B.V: Mulheres nunca procuraram assim o cinema. Tanto que você vê que ainda hoje, no mundo, temos pouquíssimas mulheres a dirigir cinema. A mulher, acho, nunca se tomou a sério a esse respeito, não sei... A minha mãe dizia que nada se deveria fazer por acaso. “Gosta do que é poesia? Então estuda o que é poesia.”. “Gosta de declamação? Então estuda p’ra ver se gosta, se é capaz de fazer, se gosta mais de ouvir, qual o gênero que gosta mais”. Isso me incentivou muito. Ela foi-me mostrando qual a diferença de uma poesia lírica para uma poesia dramática, por exemplo. Minha mãe foi uma pessoa importantíssima na minha vida artística. Eu acho que, se eu não tivesse nascido como filha dela, eu não tinha tido o grande prazer, a grande alegria de ter conseguido realmente essa carreira que foi a minha paixão. Eu teria feito outra coisa.

W.P: E no seu caso, além da poesia, teve ainda uma formação em teatro, canto, piano. Voltando um pouco ao tema anterior, ou seja, você teve todo o apoio de sua mãe e, num determinado momento, passou a ter contato com o cinema. Como foi isso?

BV: Trabalhei como atriz em Sonho de amor (Carlos Porfírio, 1945), quando fui uma das protagonistas. Eu gostava de cinema, mas dizia para mim: “não é isso o que eu gosto no cinema”. O que eu queria era dirigir cinema. Então, um amigo meu na época disse: “quer ser homem?”, e eu respondia: “que horror, por que é que só homem é que pode dirigir cinema? Mulher não pode dirigir cinema porquê?” Naquela época pensavam que só os homens é que podiam certas coisas, nós mulheres não podíamos, um absurdo! Ainda hoje tem gente que pensa assim. E não tem nada uma coisa com a outra. Por exemplo, um homem dirige um filme muito delicado, isso não quer dizer que ele tenha que ser homossexual. Não precisa ser homossexual para ser delicado, não é? É isso que não entendem, querem sempre dar um rótulo às pessoas. Eu sou contra os rótulos!

WP: Sobre este aspeto, houve uma abertura maior para as mulheres depois do fim da ditadura em Portugal?

BV: A minha mãe teve sempre a preocupação de que eu não fosse política, porque eu sempre fui muito apaixonada. Quero dizer, quando eu gostava de alguma coisa, tinha que mergulhar. Então eu comecei a me interessar por política e a minha mãe ficou muito receosa. Como era a época de Salazar, ela tinha medo dos meus exageros. Por isso, eu fui um pouco brecada em política, nunca fiz nada para não desagradar à minha mãe. Por mim eu teria feito.

WP: Depois do seu filme, em 1946, o segundo filme de longa-metragem a ser dirigido por uma mulher foi realizado pela Margarida Cordeiro, ao lado do António Reis, em 1976. Eu falo do Trás-os-Montes. Ou seja, apenas 30 anos depois do seu feito é que uma mulher voltou a assumir a frente de uma produção cinematográfica em Portugal.

BV: Quiseram que eu cortasse alguma passagem do filme, mas eu disse “não corto, eu não estou fazendo um trabalho político, eu estou fazendo o testemunho de uma realidade”. Se fosse para cortar, eu preferia não fazer. Para isso eu sou muito assim, sou muito escorpiniana. (risos)

WP: E esse foi um projeto que começou com o Raul Faria da Fonseca...

BV: Sim, com o Raul Faria da Fonseca. Este homem teria sido o nosso maior realizador de cinema em Portugal. Foi uma pessoa por quem eu tive uma admiração fantástica nos seis meses em que convivi com ele, quando fui chamada para ser sua assistente. Aprendi muito com ele e tinha profunda admiração. Infelizmente, ele faleceu. Senti sempre muita falta dele e acredito que o cinema português perdeu um grande realizador de filmes.

WP: Você ter assumido a direção do filme não tem a ver com a morte dele, pois não? Como foi que isso aconteceu?

BV: Eu, outro dia, disse isso à minha filha: “sua mãe foi uma mulher de sorte”. Porque todo mundo luta... Até hoje, se uma pessoa quer dirigir um filme, vai ter dificuldade em conseguir uma produção porque não dá um lucro imediato. O cinema não é fácil para se ganhar dinheiro. Então, ninguém está com o dinheiro na mão, não é fácil.

WP: Mas você falava também a propósito do Raul Faria da Fonseca...

BV: O Raul Faria da Fonseca estava preparando um filme e havia me convidado para ser assistente dele. Quero dizer, isso já era fantástico para a idade que eu tinha, eu era muito novinha. E ele me convidou porque achava que eu tinha muitas qualidades para isso. Quando ele morreu, não muito tempo depois, a produção, que tinha já tudo mais ou menos preparado para a feitura de um filme, me convidou. Daí eu fiquei super aflita, fui ter com a minha mãe, chorei e disse: “mãezinha eu queria tanto falar sobre cinema, mas agora eu não posso porque o senhor Raul faleceu” (na época eu o tratava por “senhor Raul”). Então, minha mãe me estimulou e a partir daí a própria produção do filme me procurou e disse: “se ele tinha tanta confiança em você, por que você não dirige o filme?” E eu disse: “eu, dirigir cinema?, mas eu não tenho curso, não tenho nada!” Assim foi, quer dizer, a produção acreditou em mim, eu comecei e pronto.2

WP: Isso tudo foi com a Invicta?

BV: Sim, Invicta Filmes do Porto. Porque havia dois produtores, o senhor Felisberto Felismino, de Lisboa, e o senhor Senha, que era do Porto. O senhor Felisberto me conheceu como artista de cinema, quando eu estava trabalhando em um filme em que ele era um dos produtores, o Sonho de amor. Eu era artista. E era muito admirada porque era muito novinha naquela altura, mas era muito pontual, muito séria. Tinha sempre uma preocupação em fazer tudo dar certo. Isso chamou muito a atenção, a mentalidade de uma pessoa com muita responsabilidade. Mas teve, na altura, críticas que diziam “mais uma mulher que deseja ser homem”. Eu fiquei tão revoltada, porque eu não queria ser homem, eu queria fazer filme!

WP: Mas não entendiam isso...

BV: Não entendiam. Era difícil aceitar que uma mulher... Ainda hoje, se você vê uma mulher dirigir um filme ou ter um cargo muito importante, vão dizer “mulher?”, entende, com um certo receio. Não nos tomam tão a sério como nós merecemos.

WP: Nesse mesmo período você fez um documentário sobre a neve em Lisboa.

BV: Foi a Neve em Lisboa. Porque Lisboa é uma cidade muito calma, tem um clima muito estável, não era hábito [ter neve]... Um dia, de manhã cedo, abri a janela e era tudo branco, por acaso, era tudo lindo, deslumbrante, tudo branco: tinha tido neve em Lisboa. Então eu cheguei ao estúdio, onde eu estava fazendo o Sonho de amor, e disse assim: “nunca penso que tenho pouco dinheiro, mas hoje eu pensei: não tenho dinheiro para dirigir um documentário!” Então disseram: “que documentário?” “Sobre a neve em Lisboa”. E eles: “ó Bárbara, o que interessa um documentário sobre a neve em Lisboa?”. E eu: “aqui nunca se viu nada disso... interessava sim, interessava”.

WP: Era uma novidade...

BV: Era uma novidade. Então, alguém ouviu e fez o filme sobre a neve em Lisboa. Fez com um aspeto diferente do que eu teria feito na época, mas me convidou, foi muito correto, me convidou para eu apresentar [o filme]. Eu nunca tinha apresentado. Então, eu fui como locutora [narradora], digamos assim. Foi a minha estreia no cinema como locutora4.

WP: Entendi. Então, foi realizado por uma outra pessoa e contou com a sua participação como locutora. Agora não se sabe se o filme foi preservado, não é?

BV: Isso eu não sei dizer.5

WP: O próprio Três dias sem Deus tem poucos minutos preservados na Cinemateca Portuguesa.

BV: Isso me disseram, me contaram...

WP: Mas, o filme como um todo se perdeu...

BV: Eu poderia ter comprado na época, porque venderiam mais barato, mas eu não comprei. Eu era muito aérea, muito nova! Era nova demais, não é? Não tinha amadurecimento. Hoje eu ainda sou meio assim, imagina naquela altura! Eu nunca fui comercial. Pensar, ganhar, não! Não queria que ninguém perdesse comigo. Eu dizia: “eu vou fazer isso, dirigir esse filme, mas eu não dou a certeza de que o senhor vai receber esse dinheiro todo [de lucro], portanto, vou fazer com o menos dinheiro possível”. Então eu fazia contas e contas para sair o mais barato possível. E consegui, consegui. Salvo engano, eu consegui fazer o filme com 700 e poucos contos, o que é uma miséria! E o filme foi apresentado em Cannes e eu fui considerada uma personalidade. Quero dizer, isso com aquela minha idade! O filme e como diretora, quero dizer, valeu a pena (risos).

WP: Qual a sua lembrança de Cannes? Foi a primeira edição do festival, não foi?

BV: Veja bem... veja como eu sou, e o pior é que eu continuo a ser assim... No fundo, é burrice, porque a repercussão teria sido tão grande que eu poderia ter tido uma projeção no cinema português maior ainda do que a que eu tive. Porque Cannes queria que eu fosse, me convidou com tudo pago, mas eu tinha a estreia do filme no Porto, que é a segunda cidade de Portugal. E eu, porque tinha me comprometido a estar na estreia do Porto, não fui a Cannes... É burra ou não é burra? Hoje eu verifico que foi um erro.

WP: Mas isso tem a ver com a sua seriedade.

BV: Sim, eu fui educada a cumprir, a fazer, tal... É estranho, mas eu entendo porque a minha mãe dizia: “se você se compromete com uma coisa você tem que cumprir.”

WP: Mas você depois fez uma viagem, veio ao Brasil com o filme.

BV: Não, eu não vim com o filme. O filme veio ao Brasil e eu vim ainda estava estreando, tanto que eu apareci no último dia: apareci no palco, fui muito aplaudida, foi muito bacana.

WP: Ao lado de outros realizadores...

BV: Não, eu vim sozinha, como artista, não como realizadora... Eu tinha um filme que era meu sonho fazer naquela época, sobre António Nobre. Eu gosto muito do poeta António Nobre, um grande poeta português e... não tem havido aquela grande deferência com ele, como ele merecia. Ele era um poeta que estava cem anos à frente da época dele. Eu gostava muito dele, então eu queria muito fazer um filme sobre ele, mas não cheguei a fazer...

WP: Não teve liberação de verba?

BV: Sim, não tive dinheiro, não tive liberação de verba.

WP: Após isso sua carreira prossegue como artista. Como se deu o convite para a sua vinda ao Brasil?

BV: Desde o começo, eu sempre fui convidada para vir ao Brasil, e aceitei. Naquela época, já vim como artista de teatro. Estreei no Teatro Cultura Artística. Assim, eu sempre tive muito respeito pela arte, eu não queria só ganhar dinheiro. Aquele era um contrato bom (porque eu sempre fui considerada uma artista cara e era realmente um contrato muito bom), mas eu disse “Não. Só [vou] sendo apresentada por uma figura de projeção”. E eu fui apresentada, em São Paulo, por Guilherme de Almeida, que era o Príncipe dos Poetas. Depois disso, eu comecei a ter tantos convites que eu não pude ir embora logo. Eu fiquei a dar espetáculos em todo o Brasil.

WP: A sua expectativa, na época, era vir, se apresentar e voltar, mas acabou por ficar.

BV: Não fiquei totalmente, mas fiquei bastante tempo.

WP: E quando é que vem em definitivo ao Brasil?

BV: Isso só quando me casei. Eu vim ao Brasil três ou quatro vezes, mas depois eu casei-me com um brasileiro. Eu cheguei ao Brasil já para me casar em Aparecida do Norte, que era promessa de meu marido, que infelizmente faleceu no ano passado. Ao contrário de quase todos os homens que são contra a mulher ser artista, ele achava um crime eu não aceitar declamar. “Eu nunca gostei de poesia”, ele falava, “mas você diz poesia de um jeito que eu até me comovo.” Foi muito bonito, mas passei a acreditar no destino, que eu também não acreditava. Passei a acreditar, porque ele foi embora e eu passei a acreditar.

WP: Depois do casamento é que a senhora fixa-se no Brasil e começa a trabalhar na Rádio e TV Tupi?

BV: Não, muito antes de casar. Quando eu vim ao Brasil pela primeira vez, fui convidada pelo senhor Chateaubriand, que era o dono da Tupi. O Chateaubriand viu-me em Lisboa, no São Luiz.

WP: Estamos falando à volta de 1952, 1953?

BV: Sim, 1952, 1953. Ele viu-me em Lisboa, no São Luiz, que era um grande cine-teatro. E ele viu-me dar o espetáculo sozinha. É... eu não gosto da palavra “declamadora”, mas era como eu era apresentada: “declamadora Bárbara Virgínia”. Ou diseuse, mas diseuse fica muito pedante porque é francês, então chamam “declamadora”, mas eu não gosto. Porque a poesia tem um determinado estilo que é declamado, mas têm estilos que não são declamados, são para serem ditos! Sempre teimei nisso, que a poesia é para ser dita! E automaticamente sentida.

WP: Então houve esse convite do Chateaubriand, mas mesmo assim você não fixou no Brasil.

BV: Não, ainda não. Houve um ano em que eu vim ao Brasil três vezes.

WP: Daí casa-se em 1963...

BV: 1963 ou 1964...

WP: E a vida artística continua a mesma ou há uma mudança a partir de então?

BV: Há uma modificação. A partir daí eu começo só a aparecer em rádio.

WP: Só no rádio... na Rádio Tupi?

BV: Sim, apenas na Rádio Tupi...

WP: E por que não mais na TV? Teve algum motivo específico?

BV: Aí vem a parte exatamente... Que o meu marido adorava ver-me trabalhar nos espetáculos, mas como mulher casada, ele era contra. Ele dizia que o público não estava preparado, que eu era muito nova nessa altura, sempre muito dada, muito conversadeira e tal. Então ele dizia: “vão pensar outra coisa e eu vou me aborrecer casado com você”. E eu deixei... Mas depois o próprio Guilherme de Almeida pediu para eu voltar.

WP: Seguiu, portanto, no rádio.

BV: Depois eu me afastei porque acho que a pessoa é bom que se afaste ainda em beleza. E foi o que aconteceu comigo. Quero dizer, teatro lotado super-lotado, críticas maravilhosas... Porque depois deve ser muito chato, como eu tenho ouvido, às vezes, certas pessoas, a dizer “olha como ela está gorda”, “aí como ela está feia”, “aí como ela está não sei o quê...”. Então, eu não queria dar asas a essas coisas. (risos)

[Wiliam Pianco mostra à Bárbara Virgínia um livro com imagens da extinta TV Tupi do Rio de Janeiro]

BV: Eu vim ao Brasil a convite do Chateaubriand, que me viu em um espetáculo no São Luíz. Ele viu-me ao vivo e achou que eu deveria ser contratada pela Tupi. Foi nessa altura que eu conheci o Airton Rodrigues, que também foi uma pessoa maravilhosa na minha vida, o Homero Silva, o Ribeiro Filho, todos aqueles diretores da época. Eu tive muita sorte com as pessoas porque eu não tenho muito jeito para falar de mim, então as pessoas se interessavam e pesquisavam. Se você vê a quantidade de propaganda que tinha a meu respeito, eu mesma fico admirada em perceber como as pessoas ficavam interessadas.

WP: Na Rádio você ficou até quando?

BV: No rádio eu comecei com 9 anos de idade, mas eu não tinha voz de 9 anos, tinha voz de mulher, pensavam que eu era mais velha.

WP: E com relação à Radio Tupi?

BV: Na Rádio Tupi foi depois, com a Bárbara Virgínia já conhecida. Mas fiquei lá até a década de 1970. Agora, eu nunca fui de arquivar nada a meu respeito, entende? Eu sempre acreditei em mim, mas nunca pensei que outros acreditassem. Por exemplo, dirigir cinema. Eu lembro que quando eu disse à minha mãe que eu ia dirigir cinema ela disse: “olha, vai fazer o quê? Filha, vamos tirar essas ilusões da sua cabecinha que você vai sofrer muito. Tu és muito sensível... quem é que vai dar um filme para uma mulher dirigir? Uma mulher? Nós não temos esse privilégio!”, disse minha mãe. É interessante, não é? Quero dizer, eu sou uma mulher de sorte porque ainda hoje eu acredito que há muita moça que é capaz, que tem capacidade e tem dificuldade de conseguir um contrato, porque é difícil, muito difícil!

WP: Sabe que depois do seu filme, do Três dias sem Deus, ou seja, de 1946 até 2009, foram apenas cerca 40 filmes (ficção de longa-metragem) realizados por mulheres em Portugal?

BV: Isso é porque tem-se acreditado pouco. Começa com o seguinte: mulher ou homem não tem nada uma coisa com a outra. Arte é arte, cultura é cultura e tanto faz ter um sexo como ter outro. E há quase que uma perseguição, não é?

WP: Aproveitando esse seu comentário, você continuou acompanhando o cinema português? Há alguns nomes, seja de realizadores ou realizadoras que você gostaria de mencionar?

BV: Acompanhei até alguns anos atrás, mas não gostaria de citar nomes... Há uma coisa que nenhum dos meus colegas está bem de acordo comigo e nem eu com eles: eu sou contra a questão patriótica. Quero dizer, tem que ser um filme com características portuguesas porque é português. Eu gosto de tudo que seja universal. Então, o que me interessa é um filme que tenha um conteúdo que possa acontecer tanto no Brasil, como em Portugal, como na China ou em qualquer outro lugar.

WP: Que alcance o ser humano...

BV: Exatamente! É o que eu penso, é como eu sinto... O cinema português, e olha que nós tivemos grandes filmes, tivemos grandes diretores, esses últimos eu não estou bem a par, pois não tenho visto por aqui, mas temos muito bons diretores de cinema e, no entanto, não tem havido [um fluxo de filmes portugueses para o Brasil].

WP: Há sempre uma enorme dificuldade em torno dos financiamentos...

Cartaz do filme Três dias sem Deus. Imagem retirada do blogue de Paulo Borges, consultado a 24 de abril de 2013: http://pauloborges.bloguepessoal.com/90700/BARBARA-VIRGINIA-A-REALIZADORA-DE-TRES-DIAS-SEM-DEUS/.

BV: O financiamento é sempre uma coisa difícil... O cinema dá dinheiro, eu garanto para você que o cinema dá dinheiro. Se eu tivesse dinheiro para investir, eu investiria em cinema. Dá dinheiro, mas o problema é que não é imediato. Entrou com o dinheiro agora, amanhã recebe, não é assim. Mas dá dinheiro: se for uma coisa bem feita, dá dinheiro.

WP: Mas, retornando ao tema do rádio...

BV: Eu nunca larguei o rádio. Nunca larguei. Em Lisboa, eu era contratada pela Emissora Nacional, que era do governo. Lá, eu tinha um programa todas as semanas: “Encontro com Bárbara Virgínia”. Mas era, por exemplo: um convidado ia falar sobre Fernando Pessoa, tinha uma palestra. Então, o locutor lia uma palestra dele [o convidado] e essa palestra era ilustrada por Bárbara Virgínia. E eu dizia versos de Fernando Pessoa. Assim, eu fazia isso com diversos poetas. Mas contratada, eu, por minha conta, nunca fiz nada.

WP: E houve um momento em que você saiu da Rádio Tupi, depois do casamento.

BV: Meu marido não gostava que eu aparecesse... Ele não me dizia que não queria, ele era incapaz de me dizer isso, mas eu sentia que ele ficava contrariado. Porque, sabe que o ambiente artístico até hoje... e eu sou muito espontânea. Então, se eu já te conheço, dou-te um beijo, um abraço, mas não é com outra intenção. E o meu marido sabia que não era com outra intenção, mas ele dizia: “os colegas, os amigos não sabem”. Então, eu achei melhor... Eu sou sempre “ou tudo ou nada”, daí eu preferi sair. Disse: “deixo”. E deixei. Deixei tudo [rádio e televisão].

WP: Há outras duas informações que eu gostaria de confirmar com você. A primeira é com relação à abertura de um restaurante.

BV: Ah, sim, o restaurante eu dei o nome, mas foi obra de minha mãe. Porque minha mãe era uma grande anfitriã, e depois meu pai foi embaixador em alguns lugares, e ela estava habituada a receber. Então ela chegava em São Paulo e ficava triste porque via lugares assim muito (como hei de dizer?) simples... e dizia: “pensam que, em Portugal, a pessoa não tem um certo requinte para receber.” E ela ficava triste, ela era muito portuga! Ela queria que conhecessem Portugal, vissem como era, que o povo era culto, que o povo era assim e tal... Eu dizia: “está exagerando um pouquinho, está exagerando um pouquinho.”

WP: Então vocês acabaram montando um restaurante em São Paulo?

BV: Em São Paulo. Mas foi tudo obra de minha mãe. Chamava-se Aqui é Portugal.

WP: E a outra informação diz respeito à escrita, pois você escreve dois livros: A mulher na sociedade e Poder pode, mas não deve. Como se deu o processo de escrita desses livros?

BV: Foi um grande sucesso o Poder pode, mas não deve, que pode ter sido por conta do nome do livro, que foi uma casualidade. Falávamos do título do livro, eu disse: “eu não tenho um título.” Mas eu precisava de um título e não podia pôr um qualquer, tinha que ser de acordo. O livro é simples, sobre as coisas feitas de maneira simples. O título não podia ser pedante... Então foi saindo, ao longo de uma conversa, e, de repente, saiu o Poder pode, mas não deve. E foi um grande sucesso!

WP: E o livro trata do comportamento humano, das relações...

BV: Eu, quando pequena, nunca fui proibida de fazer nada. A minha mãe me educou de uma forma assim: [eu dizia] “olha mãezinha, eu posso fazer isso assim e assim?” [e ela respondia], “olha, poder pode, mas não deve”. Ela dizia isso, era o natural dela. “Como não deve?”, “olha minha filha, não fica bem, se você está vestida com um vestido de soirée e vai sair, fazer isso ou aquilo fora de hora, não pode. Se está com vestido de soirée, tem a hora para estar na festa, o lugar onde está, se está numa embaixada, etc...”. Ela me dava a explicação do lugar em que uma pessoa está quando fala uma coisa, fala outra... Por exemplo, eu queria ser “moderninha” e queria falar palavras, quase um palavrão. E ela dizia: “não gosto”. Eu respondia: “mas todo mundo fala”, ela: “todo mundo é todo mundo... mas eu não gosto de te ouvir falar assim.” Entende? Ela dizia coisas que me fizeram raciocinar. E aqueles que têm feito curso comigo parece que não desgostaram do jeito. (risos)

WP: Com relação ao livro A mulher na sociedade, é uma extensão do primeiro, do Poder pode, mas não deve?

BV: O tema é sempre a questão da sociedade...

WP: E você ainda pensa em escrever outros livros?

BV: Pensar eu penso, mas eu ando... eu não posso dizer tensa, mas estou agitada... e agitada eu não gosto de fazer nada. Eu gosto de fazer quando estou “em beleza”, como gosto de dizer. Então, eu fecho os olhos... é como se eu estivesse me preparando para ser maquiada. Assim, eu fico [fecha os olhos]... e quando eu relaxo totalmente é que eu escrevo.

WP: Para finalizar, Bárbara, eu gostaria de ouvi-la dizer sobre a importância da arte em sua vida, na sua trajetória.

BV: Eu acho que tudo que seja arte pode enriquecer a nossa vida. Porque é um conhecimento e, se diz arte, é superior, maravilhoso, sensível e vai-nos ativar todos os sentidos... eu acho que deveríamos estimular mais o contato com as artes, isto que você está fazendo, mas em número maior... Gosto de conversar, gosto muito, talvez até demais, mas é preciso a pessoa se comunicar, porque senão nós não descobrimos as coisas.

WP: Bárbara, muito obrigado.

BV: Eu que agradeço.

Notas

1Ana Catarina Pereira, na sua tese de doutoramento recentemente publicada “A mulher-cineasta: Da arte pela arte a uma estética da diferenciação” fala também do importante papel de outras mulheres antes do 25 de Abril, no mundo do cinema, nomeadamente da produtora, Virgínia de Castro e Almeida; da actriz e produtora, Maria Emília Castelo Branco; e da documentarista, Maria Luísa Bivar, entre outras.

2Cf. Vieira, M. (2009). Três dias sem Deus. Tese de Licenciatura. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade Clássica (a aguardar publicação).

3Nesse ponto da entrevista há uma clara confusão por parte de Bárbara Virgínia, pois, conforme pudemos apurar a partir do precioso auxílio de Tiago Baptista, historiador do cinema português, conservador e investigador do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, Raul Faria da Fonseca faleceu em 18 de julho de 1950, em acidente aéreo em Angola, durante rodagem do seu filme Epopeia da Selva. Desse modo, não poderia ter sido substituído pela realizadora em 1946 na realização de Três dias sem Deus em decorrência de sua morte.

4O documentário Neve em Lisboa está creditado no site IMDB como tendo sido dirigido por Raul Faria da Fonseca, em 1945.

5A curta-metragem documental Neve em Lisboa (Raul Faria da Fonseca, 1945) foi produzida pela Cinelândia; desta obra existe apenas uma cópia de montagem incompleta, com 6 minutos de takes no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento; o filme foi preservado em 2006.

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Wiliam Pianco

Wiliam Pianco é doutorando em Comunicação, Cultura e Artes pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, onde desenvolve uma tese dedicada aos “filmes de viagem de Manoel de Oliveira”. Possui o título de mestre pela Universidade Federal de São Carlos (Brasil). Como investigador, dedica-se ao cinema português, com ênfase na obra de Manoel de Oliveira. É autor de diversos capítulos de livros e artigos em veículos especializados na grande área do cinema e do audiovisual tanto em Portugal como no Brasil.

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Ana Catarina Pereira

Ana Catarina Pereira é docente na Universidade da Beira Interior. É doutorada em Ciências da Comunicação, na vertente Cinema e Multimedia, com a tese “A mulher-cineasta: Da arte pela arte a uma estética da diferenciação”. Investigadora do centro LabCom.IFP, é licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, tendo trabalhado diversos anos como jornalista, e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca. É co-organizadora da obra “Geração Invisível: Os novos cineastas portugueses” e autora do “Estudo do tecido operário têxtil da Cova da Beira”.