
Anabela Branco de Oliveira
IN THE NICK OF TIME
Título original: EIN AUGENBLICK IN MIR
de David M. Lorenz
Alemanha / Germany,
2011, 13 min
Realização, produção: David M. Lorenz
Direcção de fotografia: Darja Pilz
Montagem: Florian Eisner, Darja Pilz
Musica: Martin Kreft, Marina Funck
In The Nick of Time ( Ein Augenblick in mir) é um filme de tempos e momentos, de interrupções e de recuperação de um tempo, de minutos irreversíveis e de instantes recuperáveis. É uma curta-metragem com treze minutos onde se concentram a vida e a possibilidade da morte, a mentira e a verdade, as fronteiras entre a alienação e a arte.
É uma curta-metragem feita de olhares, conduzida por olhares e espelhada nos olhares de um adulto e de uma criança: duas personagens na interrogação de um tempo. Um intercâmbio chapliniano. São duas personagens que estabelecem um pacto: o olhar da criança transforma a atitude do adulto. O olhar da criança exige a mudança, vigia o detalhe das atitudes, incentiva a arte, proclama a vida e não se deixa enganar. O rosto angustiado do adulto, em grande plano, choca com o rosto transparente e decidido da criança em plano de conjunto. Um rosto mais longínquo mas fortalecido e construído no olhar do adulto projetado para fora de campo.
É uma curta-metragem que decorre num só espaço – um apartamento despojado, sem cor – mas que projeta, através da transparência, um olhar para um outro espaço – uma janela, no prédio do outro lado da rua. É uma curta-metragem de duas janelas, dois mundos que se tornam, ao mesmo tempo, transparentes e opacos. Duas janelas e duas câmaras subjetivas. Duas janelas indiscretas construídas na interação constante dos olhares, sem o esperado voyeurismo hichtchcokiano. São duas janelas que transmitem dois mundos a descobrir, duas realidades interrogadas.
O espetador entra no universo das duas janelas e das duas personagens num jogo contínuo entre silêncio e música. E, nos sons dos sopros e da percussão, a carga extraprofílmica, fazendo lembrar as coreografias fellinianas na manhã de nevoeiro de Amarcord, torna-se profílmica acompanhando os movimentos corporais do adulto. O silêncio domina a preparação do enforcamento, o colocar da corda, o rigor dos pés na preparação para o salto e, de novo, o gesto de assumir a verdade em relação ao suicídio quando, perante o olhar exigente do miúdo, o adulto coloca a corda no caixote do lixo e assume uma nova atitude. O silêncio regressa, no fim, quando o pano fecha, a caixa cai e surge uma outra interrogação: a foto da criança da janela.
O silêncio é violentamente cortado pela percussão e pelos sopros na instalação de um contraste e de um processo narrativo. A música começa quando o adulto olha para fora de campo e pára, no momento do enforcar. Começa a música quando ele olha para a janela do outro lado da rua. E a música define o jogo plástico teatral, os gestos circenses do adulto e o eclodir da vida e da arte. Em In the Nick of Time ( Ein Augenblick in mir), silêncio e música definem as fronteiras entre a vida e a morte.


O universo da morte existe na casa despojada e sem cor e na vida encaixotada apresentada num plano panorâmico em plongée: um olhar de quase enforcado. Existe nos gestos em grande plano do adulto quando prepara a corda, quando respira fundo e ensaia a posição dos pés na proximidade de uma decisão final. A morte existe, na sequência inicial do filme, numa da janelas. Na janela, do outro lado da rua, começa a vida, no olhar indiscreto e inesperado de uma criança. O momento da morte deixa de ser íntimo e solitário: a criança, a partir da outra janela, interroga, exige e torna-se alavanca de uma mudança. Perante isso, o adulto resolve projetar a vida ou, pelo menos, disfarçar a decisão de morte.
In the Nick of Time ( Ein Augenblick in mir) é um intenso jogo entre a mentira e a verdade, entre o disfarce e a realidade. E entramos assim num universo begniniano que revisita a memória de um outro adulto que quis, a todo o custo, fazer do horror concentracionário um jogo divertido que tornasse o filho feliz. Através dos gestos e dos olhares, o adulto transforma o movimento do enforcamento, a posição definitiva em cima do banco numa eventual e necessária troca de lâmpadas, transforma a evidência da corda num objeto de jogo e malabarismo, transforma o sangue da queda num momento indelével de um cozinhado imaginário. Um cozinhado imaginário com um pano que transforma sangue em suor e vapor de fogão, numa colher de pau cheia de sabores imaginários que enganam a mãe mas não enganam o miúdo.
A perspicácia da criança exige um pacto entre os dois. Um pacto que começa num plano fundamental: quando a corda domina o campo e denuncia a realidade, num jogo de olhares cruzados e transgressores como uma fotografia de Doisneau. Um pacto que se concretiza quando a corda é definitivamente atirada para o caixote do lixo.
Na eclosão da verdade, nasce o pacto da arte: nascem objetos estéticos e gestos plásticos. A alienação do vazio e do inútil dá lugar à imanência e à transcendência da arte. O adulto ausenta-se, por segundos, e volta transformado e maquilhado. Os objetos encaixotados transformam-se em arte; os gestos, outrora estudados para a morte, transformam-se em animais imaginários, em danças, em corpos que levitam, em forças e movimentos imaginários. E a criança, na janela do outro lado da rua, aceita, exige e aplaude! Duas janelas e o nascimento da arte: circo e mímica, juntos! Duas janelas e um pacto que se consolida entre os dois!
A cortina transforma-se em pano de palco e o adulto descansa e respira com um corpo de artista. E caixote cai! E, no silêncio, de novo, o olhar para fora de campo. E o olhar para a janela, do outro lado. Uma diferença! Uma surpresa? O universo do inexplicável e do onírico! Uma ausência? Uma outra encenação? Uma outra imagem: o retrato do menino, pendurado na parede, outrora nua. Outro espaço? Outro tempo? O encontro com o passado? A decisão do presente? Outro objeto “encaixotado” que se tornou objeto estético? Ou apenas a magia do olhar?
David M. Lorenz dá-nos treze minutos de fora de campo e de câmaras subjetivas. Apresenta-nos uma concentração de olhares cinematográficos onde se cruzam Robert Doisneau, Marcel Marceau, Charlie Chaplin, Federico Fellini e Roberto Begnini.
In the Nick of Time ( Ein Augenblick in mir) é tempo, verdade, mentira e imaginário: a metáfora de uma arte cinematográfica!

Anabela Dinis Branco de Oliveira
É professora auxiliar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e investigadora no Labcom. Doutorada em Literatura Comparada, orienta a sua investigação científica no âmbito dos estudos interartes, nomeadamente nas relações entre literatura e cinema. É autora do livro “Entre Vozes e Imagens – a presença das imagens cinematográficas nas múltiplas vozes do romance português (anos 70-90). Leciona vários seminários no âmbito da análise do discurso fílmico e das relações dialógicas entre o cinema e outras artes. Autora do curso “Cinema: Alquimia das Artes” na Fundação de Serralves (Porto,2009). Tem comunicações apresentadas em múltiplos colóquios e publicações em revistas nacionais e internacionais. Conferências convidadas nas universidades de Paris III, Paris Ouest Nanterre La Défense, Utrecht, Varsóvia e Lublin sobre o romance português contemporâneo (anos 60-90). Participações em júris e workshops em festivais e mostras de escolas de cinema (Avanca, ESAP, Festival de Cinema de Ourense, Festfilm-Montpellier).Pertence ao conselho editorial das revistas online International Journal of Cinema, Plural/Pluriel, Persona e Cygne Noir, revue d’exploration sémiotique (Université du Québec à Montréal)