International Journal of Cinema

DEPOIMENTO | TESTIMONIAL
A PELE

DOS ATORES SE CONSOME
por
Isabel Fernandes Pinto
A PELE DOS ATORES SE CONSOME
por Isabel Fernandes Pinto

O que há de empolgante num espetáculo de teatro é que, tal como na vida, a qualquer momento podemos morrer. Nós, atores de teatro, somos sobreviventes. E a vida que salvamos não é absolutamente nossa e nem sequer é absolutamente vida. É a vida da ficção. É o mundo do imaginário. A sobrevivência do espetáculo depende muito – talvez demasiado! - do apego a essa vida que estamos condenados a ter.

Damos o que tivermos para servir a ficção, tanto para o palco como para a câmara. Despimo-nos, exploramos emoções, estudamos o corpo, trabalhamos a voz e cada papel é uma aventura de descoberta do humano, dentro de nós. Depois, quando a personagem começa a ganhar forma, repetimos as falas e as marcações, entra a contracena, a relação com o espaço e os objetos, experimentamos, falhamos, experimentamos outra vez, falhamos, etc. etc. E temos a certeza que a personagem existe quando sabemos reagir por ela a qualquer imprevisto, em qualquer situação. Há um pulsar interno, uma sensação específica de cada personagem, aprendemos a ligá-la em nós – on/off. Depois, quando (na melhor das hipóteses) tudo isto está ganho, filmamos ou vamos para palco. Quando filmamos, a gente às vezes nem sabe bem como, o trabalho acaba, vamos para casa e um dia iremos ver-nos no écran; alguém há-de ter composto aquela vida, alguém lhe há-de ter dado sentido: o realizador. Quando vamos para palco, a coisa é diferente. No instante do espetáculo, temos que dar sentido a tudo o que o encenador colocou no palco, temos que fazer da sua composição um acontecimento. Tornamo-nos realizadores da nossa própria ficção no instante do espetáculo. A nossa atenção salta para o exterior de nós, vigiamo-nos, mas temos que permanecer em nós, pulsando na personagem, sob pena de perdermos a vida da ficção. Esse é o desafio: não morrer em palco.

O teatro aprendeu com o cinema, tal como a pintura aprendeu com a fotografia e os pintores foram captar o instante como faziam as máquinas fotográficas. É claro que a aplicação de um mesmo método em matérias diferentes gera resultados distintos. No caso da pintura o resultado foi diametralmente oposto. Os impressionistas que foram captar o instante, à revelia dos académicos em ateliers pintando modelos fixos, produziram formas que se foram progressivamente afastando do realismo vigente e do realismo da câmara fotográfica até ao desmaterializar completo. No teatro, como se processou a relação com a linguagem cinematográfica? Seria uma questão interessante e certamente prolixa que não estou capaz de responder. Mas atrevo-me a referir alguns aspetos que ocorrem de experiência e observação.

Há alguns anos, ainda na ESMAE, participei no espetáculo “Tudo é Medo”, uma adaptação de “Macbeth”, encenada por Lee Beagley. O espetáculo era composto por várias imagens que criavam um universo do domínio da surrealidade onde eram evidentes vários elementos da linguagem cinematográfica, como diferentes planos ou o slow-motion. Recordo-me de uma cena em que o público via uma mesa de banquete em plano picado; ou seja, nós movíamos um retângulo de madeira e, sustentando-o com os nossos corpos debruçados, produzíamos essa imagem. O modo e o tempo como a mesa levantava e os nossos corpos se colocavam era tarefa nossa, não havia fades nem cuts. Era tarefa, não das personagens, dos atores. Nós tínhamos que estar seguros do filme que estávamos a realizar para que a ficção não morresse, perdida na dificuldade prática da tarefa. Por isso treinámos muito, claro. E, a cada apresentação, o importante não era levantar a mesa, o importante era filmar a mesa levantando-se. De cada vez que nos debruçávamos sobre a mesa estávamos filmando mentalmente os nossos corpos em plano picado.

Num espetáculo da companhia dos irmãos Cortese – “Holiday” – os atores estabeleciam três níveis de presença muito distintos: eles estavam em contacto direto com o público através do olhar e da atitude; eles dialogavam naquele espaço de férias que era a cena; eles cantavam canções barrocas evocando um universo onírico. O fazer acontecer destes três universos no mesmo palco e sem recurso a qualquer mudança de imagem ou efeito especial era tarefa dos atores.

Em “A descoberta das Américas”, Júlio Adrião faz acontecer a ficção construída pelo texto de Dario Fo, com nada, nenhum cenário nem acessório. No palco vazio, ele cria planos, faz zooms, fade-in, fade-out, suspense, dá vida a todos os objetos e personagens, interpela-os, brinca com eles, torna-os vivos. Vemos um grande barco entrando no oceano, vemos a minúscula vesícula de um condenado à morte, vemos uma multidão de índios, vemos um homem só. O filme que nós – público – vemos é imenso, naquele palco nu. Tarefa do ator.

No espetáculo “Remendos”, do Teatro do Montemuro, interpretei uma personagem que experimentava emoções dolorosas que, em alguns momentos, se traduziam em choro. Há muitas técnicas para provocar as lágrimas e esse não foi o principal desafio. O desafio de cada espetáculo era o de gerar a emoção sem a aplacar através de uma técnica desligada do rumo daqueles acontecimentos. O importante nunca era chorar, o importante era estar nos acontecimentos, naquela vida ficcional. Muitas vezes chorei nos sítios onde era suposto chorar – a maior parte das vezes, porque quando repetimos muito o corpo adquire uma memória dos movimentos e das sensações e reproduz as experiências. Algumas vezes não chorei onde era suposto chorar e, nessa circunstância, houve espetáculos em que aceitei e continuei desenvolvendo as emoções da personagem e houve espetáculos em que me julguei mal. Porque nós nunca somos a personagem, nós nunca habitamos completamente na ficção, senão seríamos loucos. Nós temos um botão on/off e temos outra coisa: a nossa consciência de ator. Ela pode ser uma aliada, normalmente é. Mas ela também pode ser o nosso carrasco e isso acontece quando nos julgamos mal em palco, durante um espetáculo; nesses momentos tendemos a injetar energia ou emoção ou o que for que a tal consciência julgadora diz que está em falta e então entra o exagero, que é o julgamento autocrítico do ator sobrepondo-se à ficção. É preciso ir com a ficção, nunca ultrapassá-la.

E é preciso ir com a nossa realidade também. Embora o corpo tenha memória, cada espetáculo é único e nós sabemos como descobrimos sempre algo novo, como nos equilibramos na corda bamba do instante e damos vida à morte, essa morte mais viva e mais perene que a própria vida: a ficção. Há uma tomada que liga o real à ficção e essa tomada tem que ser ligada todos os espetáculos, para que a energia seja corrente, para que nada se ultrapasse, para que o estado do ator e a materialização da personagem seja um fluxo.

Mas eu – atriz – não chorava. Eu filmava-me personagem a chorar. Porque a cada vez que a emoção ocorria eu controlava a imagem, sabia até onde podia ir e o que me limitava, quais eram os contornos da minha ação. Essa tensão e contenção, alimentos internos, eram como uma fogueira que fazia arder a pele em que me via. Assim, a cada espetáculo, a pele dos atores se consome.

Isabel Fernandes Pinto

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Isabel Fernandes Pinto

É atriz, encenadora e autora de contos e textos para teatro.
Colaborou com várias companhias de teatro: Teatro Regional da Serra de Montemuro, Teatro Art’Imagem, Centro de Criatividade, EntreTANTOteatro, CAIR-TE, Terra na Boca, La Marmita, entre outros.
Integrou elencos de televisão e curtas-metragens, entre as quais Berço de Pedra, de Nuno Rocha (prémio Melhor Elenco “ALEXIS DAMIANOS”).
Criou os projetos Faunas – “Teatro Portátil” e “Fios de Tempo”, onde encena, escreve e interpreta. Encenou espetáculos com a comunidade: “Sarau Aberto” e “Manuel”, apresentado no Teatro Aveirense em 2014.
É co-fundadora da Associação Cultural Fugir do Medo.