International Journal of Cinema

ARTIGOS | ESSAYS
DEVIR

OUTRO: HIPOCONDRIA E VAMPIRISMO
EM JOÃO CÉSAR MONTEIRO
de
Susana Viegas
DEVIR OUTRO: HIPOCONDRIA E VAMPIRISMO EM JOÃO CÉSAR MONTEIRO
de Susana Viegas

Abstract

The Portuguese filmmaker João César Monteiro (1939-2003) had many characteristics as a film critic, a filmmaker, a screenwriter, and an actor. However, from these intense artistic activities, I wish to highlight his capacity, unique in the Portuguese panorama, of creating a ceremonial body of binary fluxes through the hypochondriac and vampire body. By following the conception of his fiction character João de Deus (John of God), this essay aims to highlight the consistency of his creative uniqueness as expressions of a “desiring machine” present in the conflict between the hypochondriac and the vampire body. This desiring machine is an inversion of the established social machines such as the Family, the State, and Church, a consequence of Monteiro’s criticism and of João de Deus’ Oedipal orphanhood.

Keywords: Portuguese Cinema; Gilles Deleuze; João César Monteiro; Desiring Machine, Becoming Other.

Introdução

A vida e a obra de João César Monteiro (1939-2003) são objeto das mais variadas interpretações e análises, sendo um caso singular nas relações entre artista, crítica e teoria da arte. À partida, parece-nos que vida e obra não se chegam a distinguir totalmente, tal como as personagens de João César Monteiro parecem ser, literalmente, vividas e não representadas. Todos os aspetos da sua vida pessoal parecem relevantes ou sugestivos. Desde as suas manias e obsessões, passando pelos internamentos em hospitais psiquiátricos, tudo é propício à consolidação de um mito de um “esquizofrénico controlado” (Oliveira 2005, 581). Foi acusado de ser paranoico, megalómano e violento, mas outros preferiram evidenciar o seu carácter paradoxal, surrealista, anticlerical, poético e frontal. Para Vitor Silva Tavares, a sua personalidade caracterizava-se por um mal-estar que nunca o abandonaria (poderia ter sido o paradoxo das suas origens paternas) e que lhe moldaria o espírito, aproximando-o de Charlot, o mendigo com ideias megalómanas (d’Allonnes 2004, 79). Este ensaio pretende apresentar uma aproximação crítica à obra de João César Monteiro enquanto ator, cineasta, crítico de cinema e argumentista. Ainda que a polémica tenha marcado a sua vida, hoje tendemos a reinterpretar e a reavaliar a sua obra nas suas diversas facetas, desvendando uma criação singular de natureza deleuziana.

I. A formação de um espírito livre: a crítica de cinema

“Eu, cinematograficamente, pertenço à geração da Nouvelle Vague. Segui o mesmo itinerário: a crítica, André Bazin, os Cahiers”, afirma João César Monteiro (Burdeau 2005, 444). Na autoentrevista (publicada inicialmente em O Tempo e o Modo em 1969 e republicada em Morituri te salutant), numa atitude esquizofrénica entre Monteiro cineasta e Monteiro crítico de cinema, quando auto-questionado sobre a influência que o seu trabalho de crítico teve na realização, Monteiro afirma que faz parte da “primeira geração de cineastas cultos existentes em Portugal” (Monteiro 2005, 253). Monteiro faz parte de uma geração que, nos anos 60, frequentou a Cinemateca Francesa, então no lendário espaço do Palácio de Chaillot, dirigida por Henri Langlois e frequentada por todos os jovens realizadores da Nouvelle Vague, e o National Film Theatre, que hoje constitui as salas do British Film Institute Southbank. Mas, no decorrer da autoentrevista, numa postura de assumido orgulho intelectual, Monteiro faz questão de se desligar desta geração, recusando afinidades seja com quem for. Diz o cineasta: “não faço parte de grupos e não tenho quaisquer afinidades culturais com colegas meus. Sinto-me, portanto, à margem daquilo a que se chama novo cinema português” (Monteiro 2005, 254).

Na sua colaboração como crítico na Imagem, O Tempo e o Modo, Trafic e Les Cahiers du cinéma, expõe as suas ideias sobre Murnau, Manoel de Oliveira, Alfred Hitchcock, Carl Dreyer, Jean-Luc Godard ou François Truffaut como uma tomada de posição – política, estética, vivencial. Esses textos revelam a coerência e o rigor nas decisões, como um manifesto por uma determinada ideia de cinema e de indústria cinematográfica, aquilo a que podemos chamar, como o fez Manoel de Oliveira, de uma rigorosa “deontologia” (Oliveira 2005). Para o cineasta, a arte cinematográfica, sustentada como performance ou happening artístico, é experiência de vida, hipérbole de todas as regras e valores sociais: o “autor auto-performático” (Nagib 2011). Assim, Monteiro definia-se como uma “criatura que, a par de uma total inexperiência, disfarçava mal uma certa aversão pelos negociantes do cinema” (Monteiro 2005, 249). Terá ficado surpreendido quando foi convidado para realizar o documentário Sophia de Mello Breyner Andersen (1969) pois, tal como Vitor Silva Tavares confessa, que essa seria uma segunda escolha: como seria de esperar de um espírito surrealista, livre e crítico, Monteiro gostaria de ter feito o documentário sobre Mário Cesariny (d’Allonnes 2004, 74). Nas duas décadas que se seguem a Quem espera por sapatos de defunto morre descalço, em 1970, Monteiro debater-se-á pelo reconhecimento artístico (guerra aberta com as entidades responsáveis pela exibição dos seus filmes) e pelo que considera ser a corrupção nas instituições financiadoras de projetos cinematográficos com atribuições pouco claras das verbas disponíveis. Sentindo-se criativamente asfixiado e desprezado em Portugal – compara-se a um degredado - procurará o apoio artístico e financeiro em França.

César Monteiro concebia o cinema como possibilidade de viver livremente/libertinamente o que a vida censurava e criticava à partida; idealizava o cinema como uma arte que legitimava todas as vivências imaginárias, todos os fetiches e tabus, todos os sonhos que a realidade lhe roubava. Ao filmar, o cineasta tem a possibilidade de não embalsamar uma cena, de não a compreender como uma encenação exterior à vida (uma bolha de criação artística). Por isso, Monteiro podia conceber o cinema como pura performance, na qual a linha invisível entre realidade e ficção é totalmente impercetível. Na performance perante a câmara, João César Monteiro conduz-se, e aos seus atores, ao extremo do sustentável, do aceitável, ao nível da duração de um plano. Como máquina desejante, no sentido conferido por Deleuze e Guattari, cineasta e ator vivem numa realidade contígua ao real: uma situação suficientemente real para ser intensa, mas necessariamente encenada para ser arte. Uma vez que na máquina desejante o fluxo não para, há um prolongamento no outro ator, no produtor, no espectador, na própria película sensível. E, sempre que necessário, dava-se o corte e a retoma. A continuidade temporal e a contiguidade espacial irão permitir que João César Monteiro devenha, naturalmente, a sua personagem João de Deus.

Neste exercício de análise deleuziana, a voz e o gesto são também consideradas como sendo a materialização de uma intensidade vivida como cinematográfica. Isto é, o ritmo e entoação, pausadamente solenes, entram em (des)equilíbrio com os temas mais profanos e populares, numa disposição sintetizada por Gilles Deleuze na oposição, no cinema do corpo, entre postura e gesto (Deleuze 1985, 246), entre a série temporal do antes e do depois, e a coexistência das várias camadas temporais. O gesto (do corpo, das mãos, dos passos) de João César Monteiro é tão audível como a sua voz e, esta “estranha beleza de uma imagem que sente”, como diz Laurence Giavarini (1991, 62), é, possivelmente, a construção de um corpo cerimonial.

II. Viver a sua trilogia de Deus: fluxos e desejos

Neste ensaio pretendo salientar, principalmente, a chamada trilogia de Deus: Recordações da Casa Amarela (1989), A Comédia de Deus (1995) e As Bodas de Deus (1999). Nesta trilogia é possível encontrar coerência e ligações quer com a sua obra escrita, quer com o seu trabalho enquanto ator nos seus filmes (e em Doc’s Kingdom (1987) de Robert Kramer). Mas, mais em concreto, a personagem João de Deus corresponde à criação de uma personagem fetichista e voyeurista (em hiperbólica relação com o seu criador) que, perante a constante insatisfação amorosa, coleciona simulacros que substituem o objeto de desejo, a mulher. Mais do que alter-ego ou um heterónimo (como, por exemplo, Vitor Silva Tavares defende), João de Deus é um autorretrato interpretado como uma hiperbolização do próprio João César Monteiro - todas as referências culturais – literatura, música e cinema – são as mesmas do criador. Há uma identificação concreta entre os dois, ainda que a sua versão cinematográfica seja um assumido exagero. Seguindo as indicações de Jean Narbori, a questão da aproximação da identidade do cineasta às personagens João de Deus e João Vuvu, é um ponto problemático, causa de muitos mal-entendidos, em grande parte originados por “uma criatura que se lhe assemelha mais que um irmão” (d’Allonnes 2004, 280). No caso do presente estudo, João de Deus corresponderá à encarnação de uma máquina desejante alimentada por fluxos binários e, se podemos dizer que em Édipo há a repressão da máquina desejante, em João de Deus, o Anti-Édipo ou o Édipo órfão, a máquina desejante será a sua conduta de vida. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, “o que há por toda a parte são mas é máquinas, e sem qualquer metáfora: máquina de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta” (1995, 7). Para os autores de O Anti-Édipo, as máquinas desejantes são literalmente máquinas binárias e lineares, isto é, há nelas uma sequência processual da origem ao corte e o seu recomeço (Deleuze e Guattari 1995, 11). Os fluxos são binários, entre a máquina que emite o fluxo e a máquina que corta o fluxo. Para além disso, as máquinas desejantes têm a mesma natureza das máquinas sociais, tais como a família, o estado e a igreja. O termo da análise será o objeto indiferenciado, estéril, improdutivo do corpo sem órgãos, do corpo sem imagens (sem uma imagem de si).

Tendo em conta que fluxo é tudo o que corre e escorre, nos filmes de César Monteiro os elementos indicativos de fluxo são inúmeros: o sumo da romã que escorre pelas mãos e a lição de natação em As bodas de Deus; a água do banho de Rosarinho apanhada com as mãos em concha, a corrida circular no pátio do asilo e o passeio pelo Chiado em Recordações da casa amarela; a repetição cadenciada de Vuvu a esfregar o chão, de joelhos, ao som de Bella Ciao e o fluxo menstrual em Vai e Vem (2003). Também a voz é, nele, fluxo. O fluxo e o movimento do corpo estão diretamente relacionados com outra característica do cinema de Monteiro: a imagem corpórea que sente. De um modo claro e simples, Monteiro ilustra bem esta passagem sobre o cinema do corpo, no sentido deleuziano, quando se refere a uma cena no hospício em que João de Deus corre circularmente no pátio. Diz o cineasta:

O movimento - não por acaso - faz-se da direita para a esquerda, porque assim é mais violento. Seria mais cómodo para o nosso olhar seguir o movimento inverso, o dos ponteiros do relógio. Quando corre, a personagem dá a impressão de alguém cuja trajectória circular -apesar de não haver vento - se faz contra o vento. A posição do corpo exprime um esforço imenso. É pena, mas o lado físico do cinema está a desaparecer um pouco em todo o lado. (Gili 2005, 415)

Ora, para Deleuze e Guattari, o passeio do esquizofrénico difere totalmente do passeio do neurótico, porque nele o percurso é uma máquina; o vadiar ou passar o tempo, o correr em círculos, são processos maquínicos, como acontece com João de Deus, mas também com João Vuvu e o seu passeio (de ascensão) no autocarro. No limite, podemos dizer que o seu último filme, Vai e Vem, é um título que encerra o compromisso estético e vivencial da máquina desejante, o movimento ondulante e circular sem fito aparente (como um circuito só aparentemente fechado). Deleuze refere-se ao cinema do corpo em oposição ao cinema do cérebro, um tipo de cinema que permite pensar o impensável através de posturas e gestos audíveis (Deleuze 1985, 246). Isto é, um tipo de cinema em que o corpo comunica para lá da sua potência natural, demarcando-se do esquema ação-reação da montagem clássica, ou imagem-movimento, anterior, não só à Nouvelle Vague, como a todas as escolas de cinema novo que surgiram no pós-guerra. Por este meio de expressão cinematográfico, o cinema cria um corpo através das posturas quotidianas, o cansaço ou a espera em plano sequência como representação direta do tempo, ou um corpo cerimonial, pela teatralização do corpo quotidiano do anterior nível. Para Deleuze, o cinema consegue elaborar uma teatralização mais profunda que o próprio teatro, destacando a “capacidade que o cinema teria de dar um corpo, ou seja, de fazê-lo, de fazê-lo nascer e desaparecer numa cerimónia, numa liturgia” (Deleuze 1985, 248-249). O gesto e a atitude corporal de João de Deus surgem aqui como teatralização ou dramatização do corpo, uma liturgia do corpo em João de Deus que percorre os diversos estados somáticos (e sociais) de hipocondríaco, de general, de barão, etc. Monteiro dá a cada figura o seu próprio gesto. Deste modo, o cinema do corpo na modernidade supera o antigo dilema de Bazin entre teatro e cinema, pois a este já não falta a tal “presença” de um corpo. A construção é de tal forma intensa que a sua teatralização cria a presença do corpo; o cinema pode viver da força da presença de um corpo que, a priori, parece mais próprio do teatro, no qual a presença em carne e osso do ator reforça toda e qualquer criação de uma personagem (Deleuze 1985, 261). Em César Monteiro encontramos estas duas vertentes do corpo quotidiano e do corpo cerimonial: o lado mais físico do cinema será exposto por diversos estados alterados do organismo, estados paradoxais como a hipocondria e o vampirismo, bem como elementos de aceleração dos ritmos habituais, como na corrida, no vadiar ou no dançar. De igual modo, no cineasta, o gesto é teatral, musical, “é bio-vital, metafísico, estético”, para utilizar os termos de Deleuze relativamente ao cinema somático de Godard (1985, 253).

A casa amarela de Recordações da casa amarela (Leão de Prata no Festival de Veneza em 1989) é prisão (onde João de Deus, cativo, devém vampiro em As Bodas) e pensão (onde a personagem vive num quarto alugado a dona Violeta) mas é, antes de mais, o hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, o lugar onde reencontra Lívio de Quem espera por sapatos. “A evasão de João de Deus reflete a indignação de João César para com a mortificação a que o ser humano é votado naquelas instituições”, defende Nélson Araújo (2012, 52). Tal como João Bénard da Costa salientou, o gérmen de João de Deus encontra-se precisamente em Quem espera por sapatos, quando a personagem de Lívio (Luís Miguel Cintra) é sinistramente dobrada pela voz de César Monteiro. Ou, como defende Mário Jorge Torres, “César Monteiro, a braços com os seus próprios fantasmas de um Portugal salazarento e acabrunhado, começa a criar os seus alter-egos e escreve uma pequena fábula que ilustra o provérbio do título, destinada a um filme de sketches (nunca concluído), à moda da nouvelle vague, com a máxima de Godard (“o cinema é uma vigarice”), a presidir à função” (Torres 2005, 222).

Passados vinte anos, Lívio reaparece em Recordações da casa amarela no asilo, onde João de Deus lhe pergunta: “Por acaso, tu não és o velho Lívio?”. Reencontro entre velhos conhecidos que recordam os anos passados, é sintomático que tal ocorra num asilo para loucos. Mas também César Monteiro admite esta relação de continuidade entre os dois filmes. Em entrevista a Jean Gili afirma: “Voltei a usá-lo, tentando imaginar no que se teria tornado, vinte anos depois. Se se pensar que o Lívio era já uma espécie de meu duplo, podemos concluir que há uma parte de mim que ficou fechada nesse asilo psiquiátrico” (Gili 2005, 413). A situação extremamente singular de uma “erotologia” na cinematografia portuguesa (Giavarini 1991, 61), acabou por nascer de um feliz acaso, tendo em conta que não estava inicialmente planeado que fosse o realizador a interpretar João de Deus mas, aconselhado por Otar Iosseliani e por Jorge Silva Melo, Monteiro acabou por dar corpo e voz à personagem. Para o cineasta, encarnar Nosferatu foi um gesto natural: “em relação a Recordações da casa amarela, foi-me relativamente fácil representar o papel de Nosferatu, sem maquilhagem, graças à minha semelhança com o vampiro” (Gili 2005, 414). Hoje, nem nos parece possível que pudesse ter sido de outro modo. Segundo João César Monteiro, “não é uma autobiografia no sentido exacto do termo. Penso que a personagem é um duplo da minha pessoa. Um duplo um tanto ou quanto exagerado, tratado de uma forma hiperbólica” (Gili 2005, 411). Tal como César Monteiro pretendia, Recordações acaba de uma forma invasora, com João de Deus - Nosferatu emergindo envolto em nevoeiro do interior da terra, num pátio alfacinha, no que o autor considera uma “saída simbólica da vagina” (Gili 2005, 415) mas, na verdade, essa atitude invasora, é também a confirmação da sua tarefa, cumprindo, assim, a profecia de Lívio: “Vai, e dá-lhes trabalho”.

Em A comédia de Deus (nomeado para o Leão de Ouro em Veneza, recebeu o Prémio Especial do Grande Júri em 1995), João de Deus vive agora mais remediado de finanças, sendo sorveteiro na Geladaria Paraíso para além de, nos seus tempos livres, colecionar pelos púbicos femininos, que reúne no seu Livro de Pensamentos. No final, reencontra o seu precioso livro de fetiches, reduzido a cinzas na mesma lareira onde antes contemplara as cuecas de Joaninha, figura etérea - “ele é surpreendido pela sua graça, ela que é filha de um talhante” (Hodgson 2005, 424). Com o filme As Bodas de Deus (Melhor Filme no Festival Internacional Mar del Plata na Argentina em 1999), Lívio regressa. O Enviado de Deus (mas – ainda – não enlouquecido) entrega a João de Deus uma avultada quantia. De um modo maniqueísta, alguns críticos interpretaram o Enviado de Deus como o seu inverso, o Diabo em pessoa. A verdade é que João de Deus aceita a mala com dinheiro sem questionar a origem mas, para uma personagem para além de bem e mal, ou ironicamente ateu, não haveria dúvidas perante a tentação do pecado capitalista de um enriquecimento sem escrúpulos. Desnorteado pelo súbito enriquecimento, o sorveteiro torna-se Barão mas cedo perde, não só, todo o dinheiro, como também a sua amada princesa Elena (com quem perde também toda a vergonha na - abjeta, disseram muitos - cena de amor que expõe toda a magreza de Monteiro). Remetido à pobreza, apenas Joana de Deus, que João resgatara das águas no início do filme, poderia estar à sua espera quando sai da prisão, na cena final do filme e da trilogia.

Alain Bergala sintetiza assim os três tipos de feminino que podemos encontrar no cinema de João César Monteiro: “la jeune fille lolita, la femme mûre de pouvoir, la putain” (d’Allonnes 2004, 300). Graças a esta tripla abordagem indistinta, o cineasta será criticado por não distinguir as mulheres, por não personalizar cada uma das numerosas raparigas sem qualidades que passam (ou aparecem) pelos seus filmes e que partilham entre si o fado da maternidade. Curiosamente, João de Deus não dirá a Joana que também ela será mãe. Joana será como uma aparição religiosa, não tanto no sentido beato do termo; mais no sentido paradoxal da imagem amada e desejada, porém etérea: “aparece quando quiseres”, diz Deus à filha do talhante. Colecionador ou não, o sexo feminino será objeto das suas fantasias, objeto erotizado pois, para João de Deus, a pura contemplação era já um ato sexual.

III. O caso singular de Monteiro: vampiros hipocondríacos

Existem duas figuras que se destacam na cinematografia de João César Monteiro: o hipocondríaco e o vampiro. À partida, estas duas figuras autoanulam-se mas, curiosamente, ambas vivem, quer do corpo quotidiano, quer do corpo cerimonial, seja no seu enfraquecimento, seja na sua potenciação máxima. João de Deus não se enquadra no que se pode considerar um louco de asilo; ainda que internado, a sua mente libertina, o seu sarcasmo, indiciam uma loucura que tende à esquizofrenia e à paranoia, não a neuroses clínicas. Personagem esquizoide, João de Deus cria um corpo cerimonial a partir do seu corpo quotidiano. Ou seja, a superficialidade dos devires da formação de João de Deus acontecem através da erotização voyeurista de um corpo musical, libidinoso, através do fetichismo de pelos púbicos femininos, passando pela perversidade dos diálogos e da montagem, que juntam a insinuação sexual à temática religiosa. A voz, o ritmo e o tom dos diálogos/monólogos têm um papel fundamental na expressividade da personagem, combinando (ou separando pelo evidente paradoxo) a entoação burguesa e cavalheiresca com o conteúdo popular e bairrista dos diálogos. A voz de João César Monteiro é umas das causas da eficácia de toda a ironia e cinismo, possibilitando a teatralização da figura – e das posturas corporais - de João de Deus.

Em João César Monteiro, a criação de um corpo cerimonial está intrinsecamente ligado aos fluxos da máquina desejante de João de Deus. A permanente produção ad infinitum, num desejo e consumo constantes, é percorrida por quantidades intensivas, de tal modo que, se há alucinação ou delírio, há também o sentir, marca da passagem para essa estranheza, a transformação num Outro. João de Deus sente-se vampiro antes de o mostrar. No processo de produção de fluxo e corte, a personagem encontra-se também com a produção desejante dos outros, de Joana por exemplo que, no fundo, é tão vampírica quanto ele. Neste caso, o desejo é o processo e não o objeto em falta; o desejo é maquínico. Nesta nova lógica, a tensão para o objeto de desejo torna-se um processo com a finalidade, não de possuir o que está em falta de modo a cobrir esse espaço vazio, não a obtenção como fim do processo, fim da alimentação do desejo, mas antes, de se tornar nisso que falta e que não existe à partida. É o devir como passagem e não como imitação do que se quer. O devir acontece, tem lugar, na superfície do corpo. A sua originalidade centra-se justamente nesse “tornar-se Outro”. Na animalidade de João de Deus, por exemplo, o devir não chega a ser uma imitação das posturas do morcego, pois ele torna-se morcego, através do desejo da mulher, da musicalidade, etc. Ele devém vampiro por diversos dinamismos da máquina desejante – o desejo de invadir o Outro, a mulher, o bairro, o espaço da cela. Até no sentido de devir um outro cinema português. As intensidades do corpo expostas pela sua personagem serão o território escolhido para a criação de uma nova topologia e de um tempo característicos do regime da imagem-tempo (Deleuze 1985, 164).

Se a citação a F.W. Murnau é irónica em Que farei eu com esta espada? (1975), filme no qual a chegada da Organização do Tratado do Atlântico Norte é comparada a uma invasão, simbolizada com imagens da chegada de Nosferatu no seu barco infestado de ratos de Nosferatu, uma sinfonia de horrores (1922), posteriormente, em Recordações da casa amarela, a citação torna-se numa fusão e apropriação da personagem vampírica; graças a uma extraordinária semelhança física com a personagem criada por Max Schreck, Monteiro devém o vampiro. Mas, nele o vampiro não é o ser romanticamente perigoso que se alimenta do sangue das vítimas; nele, o vampiro alimenta-se do seio. Em João de Deus, a frugalidade do alimento procurada no sumo da romã, no leite ou no gelado, por exemplo, acentua ainda mais a magreza física da personagem. Mas, como o cineasta afirma, “hoje em dia os vampiros não bebem forçosamente sangue. Um vampiro bebé alimenta-se do seio” (Hodgson 2005, 424), como corte do fluxo da máquina desejante. Para Deleuze e Guattari, o seio é origem do fluxo cortado pela extração de outra máquina, a boca, corte do fluxo. O devir vampiro Nosferatu é um processo sequencial temporal do corpo quotidiano em atitudes e posturas que revelam o seu devir-animal. São variadas as situações deste devir-animal da sua personagem: quando João de Deus espia a filha da pensão, ele desliza lentamente encostado à parede do corredor, como um animal que se acerca discretamente da presa que observa; quando vestido de oficial de Cavalaria, esvoaça a sua capa pelas ruas do Chiado; quando preso na cela, ouve a Tosca de Puccini; João de Deus, musicalmente suspenso, agarrado às grades, assemelha-se a um morcego na sua cave; ou quando partilha uma romã com Joana e o sumo do fruto escorre sanguíneo pelas mãos, pela boca. Esta imagem tão intensa da partilha da romã representa, de resto, uma osmose com as posturas e a avidez do vampiro ainda que, nestas situações, haja uma substituição do elemento original do mito (sangue) por um outro elemento visual, como o sumo da romã, o banho de leite, a coleção de pelos púbicos: o assumir do fetichismo.

Leitor de Jean Dubuffet, Monteiro poderá ser uma concretização do manifesto de Dubuffet (cuja defesa de uma arte marginal ao cânone oficial originou o movimento Art Brut em 1945), de um livre desenvolvimento do pensamento em oposição ao domínio de uma arte institucionalizada, asfixiante, que esteriliza as germinações. Dubuffet refere-se assim ao aparelho de cultura institucionalizado: “Simplificador, unificador, uniformizante, o aparelho da cultura, assente na eliminação dos desperdícios e imperfeições, no princípio de uma filtragem que visa salvaguardar exclusivamente o melhor depois de separado da sua ganga, acaba por não obter outro resultado que não seja o de esterilizar as germinações. Porque seria justamente dos desperdícios e das imperfeições que o pensamento poderia extrair o seu alimento e a sua renovação” (Dubuffet 2005, 38).

O que é também singular, além do conjunto João de Deus, é o facto de, numa obra diversa como esta e que percorre cerca de quatro décadas, em que João César Monteiro é crítico, ator, realizador, argumentista, o cineasta conseguir modular todas as máscaras, todas as possibilidades, através de heterónimos. Assim, profissionalmente assina como João César Santos, enquanto crítico de cinema, JCM, em À flor do Mar (1986), Max Monteiro, n’A comédia de Deus, João, o Obscuro em Le Bassin de J.W. (1997), criando uma intrincada trama autorreferencial, pouco inocente e complexificada com a teatralização das personagens de filmes como Stavroguine, João de Deus e João Vuvu. A multiplicidade de César Monteiro é significativa na mesma medida em que, paradoxalmente, a sua singularidade é coerente, como se uma unidade disjuntiva percorresse todas estas máscaras. A sua maior singularidade foi, sem dúvida, a sua inesgotável multiplicidade. Lembrando o trabalho de Woody Allen, Nanni Moretti, Buster Keaton, a sua figura de clown oscila entre o humor sardónico, mais ou menos sério, que partilha com estes realizadores/atores. É verdade que Woody Allen representa também o amante, o homem que deseja, mas o que corre mal a João de Deus é trágico, não cómico, como em Woody Allen. João de Deus é, no fundo, uma personagem forte, hipnotizante, vampírica, rosto sério, como Keaton (um dos realizadores-atores que mais admira), hipocondríaco como Moretti, mas assustador como Nosferatu. De acordo com Vitor Silva Tavares, César Monteiro é um poeta surrealista do ponto de vista estético, ético, moral, transgressivo, sendo o cinema a arte escolhida para dar visibilidade a essa poesia (d’Allonnes 2004, 73). Já para João Mário Grilo, o surrealismo de Monteiro aproxima-se mais das máquinas de Marcel Duchamp, “sem a mecânica involuntária e automática do sonho, a realidade (a humanidade) tropeça no mundo de João César em maquinações ‘à vista’, engenhos” (Grilo 2005, 566-567).

Tal como o cineasta admite por diversas vezes nas entrevistas, o amor de João de Deus pelas raparigas é um amor infantil, com uma ingenuidade e uma curiosidade do enamoramento próprias das crianças. Numa cena de sexo explícito de As Bodas de Deus, João de Deus não deixa de ser infantil na sua abordagem ao desejo e nas posturas corporais. A ser um amante, João de Deus é um amante que o cineasta parece não saber ser, a personagem é uma hiperbolização de todas essas possibilidades, a atualização que o cinema legitima e que a realidade critica. Ainda que admirasse o Marquês de Sade e se preparasse para adaptar ao cinema A Filosofia na Alcova, César Monteiro não é nem libertino, nem um sedutor. Um provocador perverso, sim, e, segundo João Bénard da Costa, de “passo e voz melífluos” (Costa 2005, 392).

Conclusão

A relação de João César Monteiro com a cultura portuguesa foi, em grande parte, dificultada pela frequente sobreposição da avaliação da vida sobre a obra, sem que se tivesse em conta que a obra era a sua vida. A sua visão pessimista e cínica de Portugal (a fatal maldição de ter nascido português) percorre os seus filmes que, nele, ganham uma função concreta. Nas palavras de Paulo Cunha: “o cinema de João César Monteiro é um exercício de purificação, uma manifestação de reinvenção de uma ordem social e moral que é conduzida por uma vontade autoritária de um cineasta tornado Deus ex-machina” (2010, 58). Por este motivo, mais urgente nos parece a reavaliação da sua obra cinematográfica. O seu modelo ético e profissional era há muito Serge Daney, com quem trabalhara nos Cahiers du cinéma, e que Monteiro respeitava. Para um espírito livre como ele, era, no entanto, difícil lidar com os preconceitos relativos aos seus filmes, com os critérios simplistas de filtragem na produção de obras potencialmente imperfeitas, o que, por exemplo, Dubuffet considerava ser a renovação do pensamento individual. Se nos lembrarmos que, em 1995, Monteiro, desagradado com o acompanhamento musical de Art Zoyd para Faust e para, o seu tão amado Nosferatu de F.W. Murnau, boicotou o espectáculo na Culturgest, empunhando, como uma espada, o prémio recebido no Festival de Veneza. Quando invadiu o palco, o cineasta tornou-se numa assustadora reencarnação de Nosferatu/Max Schreck. Tal como nos sugere Laurence Giavarini, “ se a realidade começa a imitar a ficção, talvez signifique também que se fabrica uma história, uma vida qualquer, com histórias” (Giavarini 1991, 61). No caso das singularidades cinematográficas criadas por João César Monteiro, podemos afirmar que a sua radicalização das ideias estéticas, políticas, éticas e morais era já uma forma de manter a coerência e a racionalidade entre a obra e a vida onde, de resto, os happenings e performances contribuíam grandemente para intensificar ainda mais essa ténue linha divisória. Na construção de um corpo cerimonial pode o cinema de Monteiro, principalmente através da personagem de João de Deus, ser a realização de um cinema do corpo alimentado pela libido das máquinas desejantes e sociais.

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Susana Viegas

Doutora em Filosofia, variante Estética, pela Universidade Nova de Lisboa e investigadora no Instituto de Filosofia da Linguagem. Foi bolseira de investigação FCT (2007-2011) e é fundadora e co-editora da Cinema: Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento.