International Journal of Cinema

ARTIGOS | ESSAYS
O CÉU

DE SUELY: EXPRESSÃO CORPORAL,
PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO E MULHERES POSSÍVEIS
de
Mariana Cepeda
e
Ângela Cristina Salgueiro Marques
O CÉU DE SUELY: EXPRESSÃO CORPORAL, PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO E MULHERES POSSÍVEIS
de Mariana Cepeda e Ângela Cristina Salgueiro Marques

Abstract

The aim of this article is to reflect on how the main personage of the film Love for sale: Suely in the sky, a woman that was born and raised in a small community of the state of Ceará (Brazil), constitutes herself by means of a gender performativity that discloses how discourses of subjection and power are intrinsically articulated with her self. But when she acts in the world, she can also modifies the discursive universe, disclosing feminilities that resist the delimitations or borders strictly defined. Reflecting on cinematographic mechanisms as movements of camera, framing and extra-field, but mainly focusing the expressive and corporal performance of Suely, we will consider the process of construction of the feminine in the film and the possibilities that it presents to breach with an historically constructed image that is based in stereotypes or that is overwhelmed to a masculine desire look.

Keywords: cinema, woman, gender performativity, feminine body, Love for sale: Suely in the sky.

Refletir sobre corpo, sexualidade, poder e identidades de gênero requer atenção a questões ligadas à invisibilidade, ostracismo e discurso. Sabemos que o gênero é uma construção discursiva que age sobre o sujeito de duas formas principais: se por um lado a auto-realização, a autonomia e emancipação dependem do uso cognitivo, reflexivo e recíproco da linguagem, por outro o uso da linguagem via discurso também está submetido a assimetrias e desigualdades de acesso e apropriação. Uma perspectiva como essa leva em conta o fato de que as competências e habilidades para construir um tipo de discurso (e se construir por meio dele) é desigualmente distribuída e tende a privilegiar a reprodução de desigualdades sociais e políticas. Enfatizar o modo argumentativo e discursivo de expressão significa, para algumas feministas (Young 1991, Fraser 1989, Spivak 2010), desprezar outras formas de enunciação e de uso de competências linguísticas, como aquelas utilizadas habilmente pelas mulheres (testemunhos, narrativas e escritas de si, perfomances, etc.) para conferir visibilidade a seus problemas e demandas, tornando-as não só audíveis, mas capazes de configurá-las como interlocutoras. Para Kohn (2000, 408), o modo como as mulheres se expressam em público é muito marcado pelos gestos e movimentos corporais, além de diferentes formas de narrar suas experiências: “então não existe uma só forma de racionalidade, nem uma só forma de linguagem. E todas elas têm relação intrínseca com o poder”.

A constituição política do gênero, ao assumir a forma de um discurso, de uma palavra responsável pela reconfiguração da experiência sensível de um eu, não se dissocia da expressividade enunciativa dos braços e da capacidade mobilizadora do olhar, pois não desfaz a aderência do corpo à ação de “tomar a palavra”. Por isso, o gênero constituído como discurso é performático: ele combina a argumentação ao gesto corporal em uma cena que se molda ao mesmo tempo em que o corpo age (“aparece”) e que as palavras do subalterno deixam de ser apenas voz para apresentá-los como sujeitos de discurso e, deste modo, como interlocutores em uma cena que se faz e desfaz com os atos de fala nela representados (Spivak 2010).

Pretendemos, neste artigo, refletir sobre como a personagem principal do filme O céu de Suley (Karim Aïnouz, 2006), Hermila/Suely, nos é dada a ver, como seu corpo nos é mostrado e que performatividades a perpassam. Perfomatividade é definida aqui a partir de Judith Butler (2010), como uma prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que nomeiam, em uma prática em que se repete, mas também mudam, em que se reconstroem constantemente as identidades de gênero. A identidade de gênero, segundo Butler, não existe, mas se constitui performativamente através das expressões de gênero, as quais são vistas como resultados de uma identidade supostamente existente. Argumentamos que os discursos atravessam os sujeitos e estes, por sua vez, ao atuarem e performarem no mundo, também deixam suas marcas neste universo discursivo-performático e sensível.

Corpo, gênero, performatividade

Foucault (2003) considera que o poder não possui um sujeito, nem se exerce unilateralmente, mas se dá de forma difusa e atravessa nossas relações de forma horizontal; “encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana” (Foucault 2003, 131). É a partir do conceito de poder de Foucault e do conceito de citacionalidade de Jacques Derrida que Judith Butler (2010) elabora a noção de performatividade de gênero. A autora também critica essencialismos, não só referentes a identidades de gênero supostamente existentes antes de suas performatividades, mas também a um sujeito do feminismo, como se este movimento representasse um ser único e homogêneo, a “Mulher”.

Em uma análise que busca refletir sobre o feminino e o cinema, Carla Rodrigues (2011) utiliza-se do termo coreografia, já mencionado por Derrida, para sugerir uma dança inédita e “incalculável”, uma movimentação de lugares, novos passos e combinações. Uma dança que incorpora o improviso e promove “mutações inéditas, enfraquecendo as determinações sociais ou culturais, e privilegiando a singularidade de cada um, de cada outro” (Rodrigues 2011, 124). Tais noções se mostrarão de grande valor para a análise que aqui produziremos e para pensarmos a singularidade da personagem Hermila/Suely.

Também são importantes as reflexões trazidas por Preciado (2011), que apresenta estratégias políticas coerentes com o quadro teórico desenvolvido até aqui. Entre elas, a “desidentificação”, as identificações estratégicas e a desontologização do sujeito da política sexual. Ao contrário de identidades universais, propõem-se identificações estratégicas, localizadas, contextualizadas, resistentes à normalização e ao ponto de vista universal, branco, colonial e straight. Para além da dicotomia feminino/masculino e heterossexual/homossexual, a autora propõe uma multiplicidade de possibilidades, de desejos e identificações.

Próxima das perspectivas apresentadas, mas também voltada para os estudos de cinema, Teresa de Lauretis (1994) defende que o sujeito do feminismo é um sujeito cuja concepção está sempre em andamento: mulheres que se situam dentro e fora do gênero, dentro e fora da representação. Lauretis também afirma que a representação do gênero é sua construção e que “toda arte e a cultura erudita ocidental são um registro da história dessa construção” (1994, 209); além de afirmar que a construção do gênero vem se efetuando hoje no mesmo ritmo de tempos passados, em espaços como a mídia, as escolas, tribunais, família, mas também na comunidade acadêmica, nas práticas artísticas, no próprio feminismo. Buscando a visão de Foucault sobre a sexualidade, vista por ele como “´o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais´” através de uma “´complexa tecnologia política´” (Foucault 1995 apud Lauretis 1994, 208), ou seja, algo não existente a priori; Lauretis afirma que o mesmo pode ser dito sobre o gênero e que ele pode ser pensado como produto e processo de certas tecnologias sociais ou aparatos biomédicos. A construção do gênero ocorreria através de “tecnologias de gênero” - dentre as quais o cinema -, e de discursos institucionais. Além disso, ela ressalta que os termos para uma construção diferente do gênero também existem nas margens dos discursos hegemônicos, fora do contrato social heterossexual e inscritos em práticas micropolíticas, contribuindo para “a construção do gênero e seus efeitos ao nível ´local´ de resistências, na subjetividade e na auto-representação.” (Lauretis 1994, 228).

Tendo em vista esse breve panorama conceitual, consideramos relevante, em um primeiro momento, apresentar algumas reflexões sobre o corpo feminino na história cinematográfica e algumas autoras que se dedicaram a pensar sobre a mulher nos filmes e os olhares que sobre elas se construíram.

Mulheres e Cinema

Segundo Laura Mulvey (1991), a mulher existe na cultura patriarcal como o significante de um outro, sempre portadora de significado e não produtora deste. “Presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do cotidiano linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher” (Mulvey 1991, 438). Ao analisar o cinema clássico americano, Mulvey (1991) aponta-o como um espaço que coloca questões referentes aos modos pelos quais o inconsciente, formado pela ordem dominante, estrutura as formas de ver e de prazer. Segundo ela, um dos prazeres oferecidos pelo cinema é a escopofilia, o prazer no ato de olhar e associado a tomar outras pessoas como objetos, sujeitas a um olhar controlador. De acordo com Mulvey (1991), na forma como o cinema se desenvolveu, é sugerido um mundo hermeticamente fechado que se desenrola indiferente à plateia, o que joga com fantasias escopofílicas e, muitas vezes, voyeuristas. Segundo a autora, utilizando o controle das dimensões do tempo e espaço (assim como processos de projeção e identificação), o cinema cria um mundo e um olhar, produzindo uma ilusão moldada pelo desejo. Além disso, o cinema clássico narrativo conforma os olhares dos espectadores aos dos personagens, sugerindo geralmente um olhar ativo masculino que recai sobre a figura passiva feminina.

A abordagem de Teresa de Lauretis (1984), por sua vez, ressalta a importância do espectador para os significados dos filmes e de se pensar o cinema como uma construção coletiva. Ao tratar do esforço do feminismo de criar novos espaços de discurso e definir uma outra visão, um outro lugar; ela afirma que essa visão não é dada em um único texto ou reconhecível como representação, mas não porque as feministas não tenham conseguido produzi-la, mas porque este “outro lugar” é o que ela denomina space-off. Segundo ela, este é “o outro lugar do discurso aqui e agora, os pontos cegos [...]. Espaços nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-conhecimento” (Lauretis 1994, 237).

Assim, é nas práticas micropolíticas da vida cotidiana e nas produções culturais das mulheres que se dão esses agenciamentos de poder e se cruzam e recruzam as fronteiras das diferenças sexuais. No cinema clássico, afirma ela, este space-off é absorvido, fechado na imagem pela forma narrativa, sendo uma das mais importantes destas formas o shot/reverse shot. É no cinema de vanguarda que o space-off se tornou visível justamente através de sua ausência, mostrando que ele existe para além da imagem representada, concomitantemente a ela, demonstrando que ele inclui não somente a câmera, mas também o espectador – o lugar de significação e resignificação.

No cinema brasileiro, as questões levantadas por Mulvey e Lauretis se mostram também importantes e as análises concernentes a uma linguagem transparente do cinema são interessantes para se pensar as construções reproduzidas, mas também reinventadas nos filmes nacionais. Segundo Gubernikoff (2009), pode-se observar uma forte influência do sistema patriarcal e de seus valores na cinematografia brasileira, além de muitos dos conceitos do cinema clássico hollywoodiano, como o da mulher-objeto, e que não participa da sociedade produtiva, nem do espaço público argumentativo. Entretanto, ela leva em conta fenômenos nacionais que influenciaram não apenas nossas formas de fazer filmes, mas também a maneira como o público brasileiro encara seu cinema, como é o caso das populares pornochanchadas, que exploravam de forma agressiva o erotismo e a vulgarização do corpo feminino, assim como estereótipos como o homossexual, a virgem, a viúva, etc.

Atualmente, no entanto, diversos autores apontam para a existência de muitos filmes contemporâneos que fogem de ambas essas heranças. Não nos interessa reforçar aqui um questionável binarismo que coloca em posições fixas e opostas um cinema considerado mainstream ou dominante e um outro, denominado alternativo. O que nos importa mais nesta análise é questionar uma linguagem que historicamente se constituiu baseada em mecanismos de projeção/identificação, voyeurismo e objetificação, os quais se adequaram a um olhar ativo, patriarcal e dominante, constituído por e constituidor de relações hierarquizadas e identidades normativas. O que não significa dizer que tal linguagem determine seus significados e efeitos, já que o espectador pode ressignificá-la e reconstruí-la, mas implica questionar certo lugar de fala.

Marcados por uma poética do cotidiano e por uma sensibilidade às subjetividades, filmes como O céu de Suely parecem inovar, como muitos filmes brasileiros em diferentes épocas, mas assumem uma originalidade própria, baseada também na singularidade de seus personagens e na proximidade junto a eles. Fischer (2011, 57) discute como no cinema brasileiro contemporâneo “há um segmento que vem se ocupando da representação da experiência individual e cotidiana (…) de pessoas ditas comuns, na rotina de uma gente não olimpiana, não heroica” vivendo no “aqui, agora”. Este cinema, que, segundo a autora (2010), tende a desvelar imagens “banais e corriqueiras”, prioriza um intimismo e subjetividade que traz ambiguidades de silêncios e lacunas. Entre os filmes que Fischer (2010) escolhe para tratar do tema do cotidiano no cinema, está O céu de Suely que, assim como os outros por ela apresentados - Uma vida em segredo (Amaral, 2002) e Durval discos (Muylaert, 2002) - lida com interdições, dúvidas, hesitações e invisibilidades de homens e mulheres comuns, cindidos, “para sempre incompletos, solitários, errantes” (Fischer 2010, 2).

Certamente a reflexão sobre a discursividade e performatividade do gênero irá nos ajudar a analisar como o corpo feminino se revela em O céu de Suely. Por outro lado, a premência da narrativa fílmica, que primeiramente nos incitou a esta reflexão, pede que deixemos claro que ela não se dispõe a ser uma ilustração da teoria. E que mais do que dizer: “a construção do feminino neste filme se dá da seguinte forma”, ou “ele capta o corpo feminino de tal maneira”; considera-se que mais importante é ressaltar que a potência do filme reside justamente na abertura às significações que não se enquadram em classificações muito limitadas ou que não podem ser captadas apenas por uma lente, muito específica, sob pena de perder a riqueza de sua ambiguidade e complexidade. Assim, se levantamos vários autores para com eles pensarmos algumas questões que envolvem gênero e cinema, nos propusemos também no percurso a deixar que o filme levantasse suas próprias questões.

O céu de Suely: caminhos de uma análise

Com roteiro original de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias e direção de Karim Aïnouz, O céu de Suely (2006) participou de vários festivais e recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, além de envolver nomes importantes do cinema brasileiro, como Walter Salles e Walter Carvalho. Filmado no interior do Ceará, conta com um elenco nordestino que se mistura a moradores locais não-atores em várias cenas (Coleção Aplauso Cinema Brasil, 2008).

O longa-metragem traz a história de Hermila, uma mulher jovem que retorna para sua cidade natal, Iguatu, no interior do Ceará, depois de ter fugido para morar em São Paulo com o namorado e pai de seu filho. Com o bebê, ela volta para a pequena comunidade e vai morar com a avó e a tia, enquanto ansiosamente aguarda o retorno de seu companheiro, Mateus. No entanto, ele começa a se esquivar das tentativas de contato feitas por ela e, por fim, desaparece. Em um primeiro momento abatida, Hermila vai retomando sua vida: arruma um novo emprego – como lavadora de carros -, volta a sair para dançar e se divertir com uma nova amiga, a prostituta Georgina, e se relaciona com um antigo caso amoroso, João, que ainda é apaixonado por ela. Entretanto, ela deseja fugir de Iguatu, novamente. Para isso, coloca em prática um plano que choca a comunidade: assume o nome de Suely e faz uma rifa em que seu próprio corpo é o prêmio.

Hermila/Suely consegue vender suas rifas para grande parte da vila e juntar dinheiro suficiente para comprar uma passagem para Porto Alegre, além de deixar uma ajuda financeira para a avó. O vencedor da rifa, por fim, tem direito ao seu corpo, por uma noite; e, em seguida, ela abandona a cidade, deixando para trás o filho e João.

Considerando esse breve resumo da história, como explicitar a complexidade e a articulação entre as diferentes facetas do feminino descortinadas por Hermila? Geralmente, costumamos olhar para um filme através de nossas lentes conceituais e buscar respostas às nossas perguntas tendo como parâmetro um quadro de sentidos e valores já configurado. Contudo, frequentemente os filmes nos devolvem nossas próprias questões, suscitam e demandam novos olhares, novas questões, novas lentes, ou mesmo nenhuma. Às vezes, demandam simplesmente que nós, mesmo para uma reflexão acadêmica posterior, assistamos ao filme como espectadores desprovidos de intenções ou busca de significados, à disposição, à deriva.

Assim como Esteves (2007), consideramos necessário manter abertas as possibilidades de leituras apresentadas pela narrativa cinematográfica. A partir de Dubois, a autora critica a atitude de se tomar uma imagem como objeto a serviço de uma interpretação. Para Dubois (apud Ferreira, Kornis 2004), a imagem produz um pensamento por si mesma, o qual devemos ser capazes de escutar, olhar e apreender, reconhecendo-a como um objeto de cultura, mas, também, como um objeto em si, que tem um poder que lhe é próprio. Ainda que seja impossível um olhar neutro, o autor afirma que o olhar deve se pretender modesto e saber enxergar além do que se pretende encontrar.

Propomos, portanto, olhar para determinadas cenas do filme deixando que ele fale por si e suscite novas reflexões a serem articuladas e tensionadas pelos conceitos de feminino e performatividade de gênero; além de considerar a linguagem cinematográfica e suas especificidades. Propomos um movimento de deixar-se envolver, como sugerem Guimarães et al. (2012), de modo a pensar o lugar do espectador que vê, sente, significa e resignifica, relacionando a mise-en-scène fílmica e o que ela instiga em termos psíquicos, sensoriais, afetivos, imaginários. A partir disso, pretendemos mobilizar os conceitos apresentados relacionando-os com o filme e pensando-os a partir do que as imagens nos suscitam, trazendo, quando necessário, novas reflexões teóricas.

Hermila e a dança

Como já discutido anteriormente, Rodrigues (2011) propõe uma dança de improviso, criação e recriação de posições de sujeito que, em parte, se aproxima da performatividade de Butler, mas com uma ênfase na performance e nas reinvenções que são postas em movimento quando os sujeitos atuam no mundo. Construir e realizar uma coreografia é estar dentro de um repertório de ações e gestos possíveis, mas também sobre eles ser capaz de inventar e, principalmente, de reinventar. Portanto, se Hermila (e também outras personagens) repete, cita, reitera as performatividades de gênero durante todo o filme, ela, ao mesmo tempo, também tensiona e reconstrói essas performatividades, deixando em aberto novas possibilidades.

Os diversos gestos e performatividades de Hermila são importantes para conferir destaque a como o movimento de dança é central ao filme. Nas primeiras imagens da narrativa, em que Hermila de certa forma dança com Mateus – mas ensaia alguns passos sozinha também, na areia -; na primeira vez que a vemos em uma festa e seu corpo se deixa levar pela música; no momento do karaoke, quando ela dança desanimada por alguns instantes, mas depois se libera; na festa de forró, em que dança com Georgina e o primeiro homem a quem oferece sua rifa; na cena no motel com o ganhador do prêmio, quando ele lhe obriga a dançar para ele.

Na primeira cena em que vemos Hermila dançando, em uma festa, somos colocados diante do seu rosto, que balança no ritmo da música, com um sorriso e os olhos fechados. Nos parece que, em um momento em que a ausência ainda se fazia tão presente, ali Hermila se liberta de tal falta, de amarras e delimitações. Ela é pura mobilidade que, por vezes, não se deixa enquadrar. Sua dança revela uma performatividade tipicamente feminina: o rebolado, a sensualidade, os acessórios em seu corpo (brincos, blusa apertada, faixa no cabelo) e, no entanto, ela rompe com o significado daquela sensualidade e feminilidade, não mais disponível para o olhar e desejo masculino (ainda que os olhares de outros personagens caiam sobre ela), mas para o seu próprio desejo e sua satisfação. Ela está, de fato, vulnerável aos olhares masculinos ao seu redor, e estaria também ao nosso, se a câmera não fosse cuidadosa.

O enquadramento evidencia mais o rosto de Hermila do que o resto de seu corpo e também não facilita nossa identificação com qualquer personagem masculino. A câmera não fetichiza, não direciona, nem tenta evitar os limites que aparecem ao nosso acesso à definição ou à apreensão completa daquele corpo: pessoas passam pelo enquadramento, Hermila deixa o quadro, por breves instantes, a câmera treme e se perde. A dança parece ser, ao mesmo tempo que suscetível a olhares desejosos ou coercitivos, um pequeno espaço de resistência, em que Hermila fecha os olhos para estes outros olhares e ignora os enquadramentos.

Hermila na primeira festa

Hermila poderia ser vista como alvo passivo dos olhares, mas como sujeito ativo em sua performance, assim como nós espectadores também parecemos localizados em uma posição dúbia de atividade/passividade. Se em uma narrativa tradicional poderíamos ser completamente ativos, identificando-nos com um personagem masculino que toma o corpo feminino como completamente visível e passível; aqui estamos diante de contradições, ambiguidades, entre-lugares, movimentação de lugares. Nem tudo nos é dado a ver, o mecanismo naturalista de escopofilia fica comprometido e mesmo o de identificação/projeção parece se dar de forma diferente – se é que se dá, realmente. Ao mesmo tempo em que não somos ativos, no sentido de dominar a cena e os corpos, e planamos entre a identificação e a não-identificação com Hermila ou com outros personagens; somos ativos em nossas produções de significados. Podemos, de fato, tentar tomar aquele corpo em sua passividade e condição de objeto sexual, ou podemos nos identificar com ele e toda a sua complexidade. Nesta identificação, podemos tanto nos sentir protagonistas de nossas vidas via expressividade da dança, ou passivos ao sermos observados.

Hermila em outra festa: ela dança, “incontrolável”, não facilmente enquadrável

Se a resistência – ou o escape – de Hermila já é possível de ser notada na primeira cena de dança, na segunda, pouco antes de assumir-se como Suely, isto fica ainda mais evidente. Hermila e Georgina dançam ingovernáveis: a câmera, muito próxima, frequentemente as perde de vista, não consegue enquadrá-las. As duas gritam, riem, vibrantes, sem se incomodar com o ambiente em volta, que não podemos ver muito bem.

Quando um homem se aproxima de Hermila para dançar com ela, ela o abraça pelo pescoço e os dois dançam, também sem muito governo ou direção. A câmera sempre busca Hermila e, no entanto, frequentemente a perde nos seus movimentos incontroláveis. O homem, por sua vez, não guia a dança: a iniciativa dos movimentos vem tanto dela quanto dele.

Dança a dois, guiada por ambos

Depois, quando se afastam da multidão, Hermila é visivelmente dona da situação. Ela contém os avanços dele e, ao som da música, dança sozinha. Ele tenta beijar seu pescoço mais uma vez e ela aperta seu “saco” - mostrando sua dominância naquela relação -, ao que ele grita e ri, ao mesmo tempo. Ela então oferece pela primeira vez sua rifa e se assume como Suely. Ao final do filme, a dança se mostrará também relevante na relação sexual de Hermila/Suely com o vencedor da rifa, cena que analisaremos em outro tópico deste artigo.

Suely

Em relação

Em um primeiro momento, pareceu-nos desconcertante que o corpo feminino se encontrasse tão exposto – frente a corpos masculinos que muito pouco se expõem – em um filme que parece desafiar os lugares e performatividades tradicionais femininos e sua apreensão pela câmera e pelos espectadores. Portanto, há, inicialmente, uma contradição concernente ao desenrolar do filme, suas imagens e enredo, em contraposição às cenas de sexo, que parecem oferecer-nos o mesmo prazer voyeristico tradicional, a mesma fetichização e domínio sobre o corpo passivo de Hermila/Suely: nu, à disposição daquelas figuras masculinas.

No entanto, há algumas ressalvas que nos parecem um desvio dessas posições convencionais. Primeiramente, como já discutido aqui, O céu de Suely rompe com a narrativa naturalista baseada no apagamento dos olhares da câmera e do espectador. Não nos resta apenas o olhar dos personagens entre si, pelo contrário, a presença da câmera e a presença/ausência do que ela não dá conta de enquadrar, dos seus limites – e, portanto, do nosso limite como espectadores – se fazem muito claros para nós. Os mecanismos de projeção e identificação estão comprometidos. É difícil falar em projeção de um ego ideal naqueles personagens complexos, cindidos e errantes, como diz Fischer (2010). Já identificar-nos com um personagem se faz mais fácil, na medida em que acompanhamos Hermila/Suely bem de perto, em suas buscas, seus anseios e suas angústias, em parte próprias de todos nós. Seu olhar torna-se às vezes o nosso olhar, já que acompanhamos tudo o que se passa a partir da presença dela em campo, das suas expressões e do seu agir naquele universo. É, em parte, por isso que consideramos tão importante a mise-en-scène da cena final de sexo. Indubitavelmente, Hermila/Suely é um objeto de desejo e, de certa forma, domínio daquele homem que a “comprou”. No entanto, cabe-nos perguntar até que ponto ela é objeto do nosso desejo e até que ponto suscita nossos instintos voyeuristas. Como podem conviver nos gestos produzidos pelo mesmo corpo feminino a mulher liberta e protagonista de sua vida e destino (materializada na dança) e a mulher cativa, “prêmio” resultante do sorteio de uma rifa?

Sabemos que o cinema – as escolhas de mise-en-scène, de cortes e montagem, de narrativa, etc. - constrói a forma como devemos olhar para a mulher e seu corpo e, por isso, fica claro que, em O céu de Suely, a câmera se detém muito mais no olhar de Hermila/Suely do que nos olhares masculinos que sobre ela caem. É importante salientar também como as mise-en-scènes de cada uma das cenas de sexo se distinguem de forma importante a partir das posições assumidas por Hermila/Suely em cada uma delas. Permanece ligeiramente incômodo o olhar de João e seu toque sobre o corpo, em parte, passivo de Hermila. E, no entanto, se considerarmos a narrativa, Hermila não é de forma alguma dominada por João e sua presença ali é opção sua, graças à sua autonomia sobre suas escolhas, seu corpo e seus desejos.

Ao mesmo tempo, podemos considerar como seu relacionamento com João pressupõe uma igualdade entre os sujeitos que se relacionam e uma superação de espaços considerados femininos – bem como a distinção entre mulheres corretas e marginalizadas. A ruptura de Hermila/Suely com o ideal romântico e sua pressuposição de uma sexualidade ligada ao amor sublime (destinado à constituição de família e laços duradouros) é substituída por um relacionamento que se baseia em um amor possível, construído a partir da igualdade social e sexual dos indivíduos envolvidos, bem como na satisfação e no investimento das partes. Portanto, o modo como a câmera acompanha as posições de cada personagem na cena em que Hermila e João se relacionam sexualmente, destaca um envolvimento em que corpos conversam: não somente pela narrativa que os envolve, como pela relação dos dois, seus gestos, suas performatividades. Os dois avançam aos poucos, devagar, um em relação ao outro. Hermila/Suely toma a iniciativa de retirar o sutiã, João, encostado na parede, aproxima sua mão como que timidamente. A forma adequada de encontro, toque, olhar, se constrói ali, conjuntamente.

Hermila/Suely e João

Já a relação de Suely com o ganhador da rifa aponta para uma direção oposta. O filme, através da história de Hermila/Suely, mas também de outras personagens femininas, apresenta uma situação de poucas oportunidades e locais de fuga para as mulheres daquela pequena comunidade, destinadas a alguns trabalhos específicos e de baixa remuneração, ao casamento e à maternidade. Mesmo na solução encontrada por Hermila/Suely, ela precisa se submeter e perder momentaneamente o controle sobre seu corpo - ainda que seja para depois ganhá-lo com mais força. É, portanto, neste momento que se faz mais importante o olhar da câmera, de Suely e o nosso. Ao contrário da sua relação sexual com João, Hermila/Suely busca se expor menos e agir mais, querendo dominar de alguma forma um momento de submissão à dominação masculina. Diferentemente da outra cena, em que ela não se importa em deixar a luz acesa e de esperar que João a toque e beije lentamente, deixando que ele venha até ela, que ele fique por cima dela; com o ganhador da rifa Hermila/Suely toma as rédeas da maneira que pode, pedindo para que ele apague a luz, tentando assumir o ritmo da situação, tirando sua roupa e a dele rapidamente, se colocando sobre ele. No entanto, o homem quer deixar claro a sua dominação e não permite que ela dite completamente as regras – afinal, ele é o ganhador e ela é o prêmio/objeto à sua disposição.

É com desconforto, portanto, que acompanhamos o rosto e corpo de Hermila constrangidos, governados, infelizes. É difícil negar qualquer possibilidade de voyeurismo por parte do espectador – ainda que a câmera, com cuidado, negue o olhar do homem, enfocando a expressão de Hermila. No entanto, nos parece interessante a possibilidade que se faz muito acessível de justamente sentir-se passivo(a), dominado(a) e constrangido(a), juntamente com a protagonista. Se, em toda narrativa, acompanhamos a ingovernabilidade dos gestos, danças e ações de Hermila/Suely, senti-la ali, presa, produz um choque com todo o restante do filme, principalmente no que diz respeito ao seu corpo, sua performance e sua posição em quadro. Naqueles momentos, Hermila/Suely não escapa, não se liberta, não se movimenta incontrolável. E, pior, se é justamente através da dança que seu corpo nos apresenta maior liberdade e movimentação, como aqui foi discutido, é com pesar que ele se enquadra naquela dança constrangida, presa, que o homem exige que ela lhe ofereça. É com Hermila/Suely que vivemos aquele momento e mesmo o gozo do homem fica no extracampo, pressionando e se impondo sobre a protagonista, claro, mas não a dominando completamente e, principalmente, não nos fazendo completamente dominantes sobre a cena.

Hermila/Suely e o ganhador da rifa
Prazer dele, olhar dela

Do céu aos céus: considerações finais

O céu de Suely é ambiguidade, abertura, incompletude. É estrada da qual não vemos o fim, um céu de possibilidades - talvez céus de possibilidades. A identidade de Hermila, as identidades de gênero - ou melhor: posições de gênero - se dão também como devires. Em enquadramentos fixos, os corpos dos personagens constantemente se movem para além deles e os tensionam; o corpo de Hermila/Suely desafia a moldura, não se deixa capturar completamente, expressa o limite do quadro recortado, sua condição de fronteiras porosas e a existência de um além: de espaços que estão depois, em off, em extracampo, espaços possíveis que existem apesar de sua não-visibilidade.

Esta fuga dos enquadramentos e a evidência de um espaço que está além dos nossos limites de visão nos remetem ao que Lauretis (1994) chama de um space-off, onde se constroem e reconstroem as posições e representações femininas, um “outro lugar” que se faz no aqui e agora, em um espaço que não aquele hegemônico – que, por sua vez, torna visível, compreensível e acessível o que cultural e historicamente se construiu como tal. Se, porém, o poder é ação e perpassa nossos discursos, gestos e performatividades cotidianas, é neste espaço que se dão também os embates, as resistências, as práticas de questionamento da dominação. A construção das identidades de gênero é, segundo Butler (2010, 163), “um processo temporal que atua através da reiteração de normas; o sexo é produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiteração de normas”. Portanto, se o gênero e a sexualidade se constituem inseridos em estruturas de poder que os perpassam, instituindo-se de forma performativa, é também dentro desta rede que se dão as reconstruções e perturbações que constituem os outros possíveis, as mutações, as improvisações e questionamentos das posições naturalizadas e normativas de gênero. E se as instituições sociais, meios de comunicação, veículos de representação são constituídos nas relações, também nelas, em suas “brechas”, como nos diz Lauretis (1994), estão contidos estes outros lugares, que podemos chamar de entre-lugares.

É possível pensar o próprio cinema, que busca novas linguagens e representações, como uma possibilidade de um lugar à margem, para além do discurso dominante, mas que, como um space-off, ou um extra-campo, tensiona o que é visível, o que é reconhecível e legitimado. Assim, também o que está ambíguo, nas entrelinhas ou entre-imagens, aberto para significações e resignificações, nos coloca, espectadores, neste espaço off, capazes de estabelecer lugares e significados outros ou aceitar o significado como um devir, que devemos permanentemente reconstruir e questionar.

Referências

Butler, Judith. 2010. “Corpos que Pesam sobre os Limites Discursivos do Sexo”. In: O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Organizado por: Guacira Louro, 151-172, Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Coleção Aplauso Cinema Brasil.2008. Roteiro do filme O céu de Suely, São Paulo: Editora Imprensa Oficial.

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Mariana Cepeda

Bacharel em Comunicação Social Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Ângela Cristina Salgueiro Marques

Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutora en Communication et Médias par l’Université Stendhal, Grenoble 3 (Institut de Communication et Médias). Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Pesquisadora associada ao GRIS, Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).