
CORPOS HIBRIDIZADOS POR INTERMÉDIO DA ANIMAÇÃO
Eduardo Messias
e
Patrícia Campinas
Abstract
The indexical body, established by the photogram, strongly associated to the constitution of the cinematographic image is inaccurate, when the digital era has arrived. Immerged on the numerical symbol environment, the image now became plastic in its composition, and can be digitally manipulated or constructed. Animation, which also went through the digitalization process with the advancement of computer technology, previously seen as a smaller audiovisual form, associated with unreality and iconicity, now finds itself at the heart of the production of digital cinema, being fundamental in the constitution of the audiovisual environment of the combinatorial images generated by synthesis. Nevertheless, what would be understood as a supposedly mangling of the filmic body, seen in a different light, may have brought an expansion in the construction of new visual paradigms, shaping hybrids languages that can be comprehended as virtual masks that allow an infinitude of visual forms, as the cases here analyzed of the films, Sin City (2005) and the Adventures of Tintin (2011).
Keywords: Cinema, body, hybridization, animation, digital.
Introdução
A palavra realidade carrega uma carga semântica bastante complexa a qual pode ser compreendida de modos distintos dependendo da área de conhecimento no qual se circunscreve (a psicanálise, a física quântica, entre outras). Para Denis1, realidade seria “o que existe efetivamente em ato” e não sua representação em oposição com o imaginário ou o fictício que existem apenas na imaginação. Esta distinção permeia muitas discussões artísticas e ao assistirmos o realizar do desejo intenso de captura mimética da realidade por meio de aparelhos mediadores (como as câmeras de gravação e fotográficas) essas discussões se intensificam.2
Muito do que o ser humano produz como forma de linguagem, incluindo as linguagens oriundas da captura de imagem desses aparatos, é apreciada justamente por nos impregnar com as veredas improváveis, ou impossíveis da realidade, adentrando assim o terreno da irrealidade. Os contos de fadas, as obras de arte e as narrativas ficcionais cinematográficas são nativos de um universo criativo que necessitamos, como forma de atuar socialmente e rearranjar nosso mundo sígnico mesmo quando eles intencionam representar a realidade. Uma vez sendo retrato feito pela mão de outrem, a figura retirada da realidade já está embebida nos conceitos e ideários de quem a representa.
Uma das técnicas que mais se pauta pela apresentação do irreal é a animação, não tanto pelo sentido narrativo, mas pelo simples fato de expressar audivisualmente uma “vida” projetada através do movimento em desenhos. Por apresentar possibilidades de produção artísticas imagéticas numerosas, que variam de acordo com as técnicas que surgem e com a habilidade criativa do animador, o aspecto da imagem em animação é icônico.
Sendo ambas as linguagens modos de representação do imaginário, a fronteira que separaria cinema e cinema de animação residiria não descompromisso da animação com o real. Diferentemente do cinema, em que a animação é utilizada muitas vezes como efeito especial e visa mimetizar o mais fidedignamente a realidade, a animação por si, busca expressar sua irrealidade. O que um artista de animação busca é o analogon com o real (segundo uma mesma razão, em Grego)3, ou seja, formas representativas que estejam em analogia com a realidade, independentemente do grau de realismo da estética pictórica que se adote, pois só assim, as imagens irão expor melhor o mundo interior de seu autor.
Presentemente, podemos afirmar que a animação computacional 3D pode ser denominada de hiper-realista, significando que o material gráfico confunde-se com o real e sua representação, apesar de ainda serem raros os filmes em que se confundem real e irreal por um longo período de animação. Essas modificações imagéticas estéticas calculadas digitalmente, em que, além da imagem, se emula radicalmente o movimento capturado por câmera, passaram não só a fazer parte das possibilidades do cinema de animação, como também incidiram sobre as produções cinematográficas, que adotaram técnicas de animação computacional em sua produção. O corpo agora encontra a possibilidade de manipulação, tanto de seus movimentos, quanto de suas características físicas. A maquiagem, os estrondosos cenários, os coadjuvantes, ou mesmo a cor do corpo e da cena, veem-se agora manipulados no meio plástico digital, com o laborioso trabalho de matte painting4 digitalmente facilitado, transformando o filme em um misto de animação e captura de imagem real.
Isso afetou certos pontos de construção de linguagem e de percepção do material fílmico, com a indistinção do universo ao qual aquelas imagens pertencem e da autêntica aparência dos corpos na tela. Porém, a emersão no meio semiótico digital, onde tudo, em princípio, é dado numérico, fez com que animação e captura de imagem real gerassem novos paradigmas visuais e facilitassem a abertura e ampliação da produção imagética, hibridizando os corpos ou os colocando como a mais aberta representação visual. Os modelos de animação 3D ou avatares, que preservam o trabalho humano de atuação dão ao corpo formas infinitas.
1. Imagem indicial, imagem icônica e imagem simbólica: O corpo apreendido, o corpo produzido e o corpo numérico.
A fotografia nos seduz por nos apresentar uma representação temporal de realidade a qual não conseguimos apreender em sua completude; o presente. A imagem fotográfica classifica-se como uma imagem indicial por ser ela um resquício temporal que mantém relação com seu objeto real, sendo claramente conectada com o presente e com a presença. O sistema indexical é a invasão do sistema semiótico pela realidade.5 Para Bazin apud Denis6, mesmo a representação mais fiel em desenho não desperta completamente nossa percepção de realidade como o fotografia o pôde fazer.
A percepção “da indexicalidade da imagem cinemática, sustenta a crença de que alguma coisa do tempo, alguma coisa do movimento ou sua impressão, ou, pelo menos, sua representação adequada, esta ali”. E o corpo fotográfico, posto em movimento, revelando a passagem do tempo, levou o cinema a uma posição perceptória diferente da fotografia, pois o movimento devolveu ao corpo a impressão dos aspectos viventes no evento cinemático.7
Para Doane8 “[...] é finalmente com as novas tecnologias de representação da visão – fotografia e cinema – que se assiste o desejo insistente de representar – de arquivar o presente”. A fotografia desembaraça e separa os instantes, tornando o presente arquivável. No entanto, embora a fotografia tenha sido associada a uma ânsia pulsante de se tronar um “armazém” de presente, ela associa-se mais a “uma afirmação inexorável de qualidade do passado - um isso tem sido”, nos conceitos de Roland Barthes:
[...] A referencialidade insistente da fotografia está ligada, para Barthes, com o conhecimento do espectador de que o objeto esteve lá, na frente da câmera, e que a imagem carrega seu rastro. Mas ele também afirma que, no cinema, o ‘ter-sido-lá desiste antes de um estar aqui do objeto’ na fotografia. O espectador sempre experimenta o filme como no tempo presente, e isto é para Barthes o que empresta ao cinema a ‘mais projetiva, mais mágica concisência de ficção’ negada a fotografia, presa à facticidade bruta do passado. 9
De acordo com Manovich10, o cinema galgou sua identidade como a “arte do índice”, pois em sua era pré-digital, não se questionava se os corpos postos à câmera haviam sido capturados pela mesma, já que a resposta era demasiadamente óbvia, pela impossibilidade de se registrar qualquer coisa além desse “perímetro”.
Conforme já apontado, a animação galga sua diferença sendo a produção da imagem colocada em semelhança com os objetos de realidade, classificando-se como uma imagem icônica. Para Manovich11, a animação “coloca em primeiro plano o seu caráter artificial, admitindo abertamente que suas imagens são meras representações”. Na era do digital, assistimos à produção desses “ícones” em movimento experimentados no presente em junção com os índices fotográficos do cinema de live action. A animação hiper-realista (animação 3D), tanto desloca de seu lugar de realidade, os corpos apresentados na tela, quanto o lugar de representação assemelhada de realidade, convencional da animação. O que se oferece ao espectador pode não ter sido capturado da realidade, mas nos propicia uma experiência bastante semelhante, pelo seu caráter hiper-realista. Segundo o autor, mesmo filmes ficcionais eram anteriormente películas que consistiam em “fotografias gravadas não manipuladas de eventos que tomaram lugar em espaço físico real”12:
Hoje, na era da simulação computacional e composição digital, invocar esta característica torna-se crucial na definição de especificidade do cinema no século XX. De uma perspectiva de um historiador futuro da cultura visual, as diferenças entre os filmes clássicos de Hollywood, filmes europeus de arte e filmes de vanguarda (além dos abstratos) podem parecer menos importantes do que esta característica em comum: a de que eles contaram com gravações baseadas em lentes de realidade.13
Porém, o cerne da questão que se apresenta com o cinema digital é que, tanto animação quanto imagem capturada do real são transformadas em dados numéricos. Mesmo a imagem de live action, atualmente, ou é capturada por uma câmera de gravação digital, ou transferida para o computador para pós-produção, fazendo-a perder de qualquer forma “[...] seu privilegiado relacionamento com a realidade pró fílmica [...]”14. Agora ícone e índice, (corpos e desenhos) se tornam linguagem assembly, sistema semiótico dos símbolos que possibilita a junção com outras formas de linguagem. Segundo Manovich, o filme se torna plástico como a pintura e a animação:
A filmagem de live action é agora a matéria-prima para ser manipulada pela mão: animada, combinada com cenas geradas por animação computacional 3D e pintada. As imagens finais são construídas manualmente a partir de elementos diferentes, e todos os elementos ou são criados a partir do zero ou modificados à mão.15
Os sinais eletrônicos simbólicos produzem outros meios semióticos muito distintos de seu original; uma transdução, pelo caráter de convertimento de informação, ou melhor, um “processamento de informação ou manipulação simbólica” segundo Haugeland16. Para melhor expressar esses conceitos, Wyatt17 explica que quando passamos da forma de gravação analógica para a digital, filme (analógico) e vídeo (digital) ainda mantiveram-se as relações análogas com o real. “Em contraste computadores geram visões digitais da realidade. Representações análogas são cópias físicas de ondas de formas de luz” já os formatos digitais “são compostos por descrições dessas ondas de formas em código binário”.
Para Speilmann18, a “imagem” eletronicamente gravada ou eletrônicamente construída, mesmo que exibida posteriormente por outro meio, em especial, projetada em tela, “merece esta designação” (de imagem), “apenas na condição de que o fluxo contínuo dos sinais, através do qual uma imagem eletrônica pode ser evocada, é mantido em mente”. Segundo a autora, a codificação da informação no sinal eletrônico, “permite controle e supervisão de paços processuais individuais e permite a apresentação de formas de visualidade, que denota vários - eletronicamente escritos ou digitalmente programados – estados” que não são a expressão de imagens “como um ponto final de uma operação”. Ao invés disso, esses estados apresentam blocos de construção com “potencial para a pictoralidade em processo”. Diferentemente dos antigos meios imagéticos, os meios digitais produzem, “formas transformativas de pictoralidade, mas não imagens”.
Retomando o termo de Manovich, compreendendo a pictoralidade referida por Spielmann19 como a plasticidade a qual o autor referiu-se, de construção do que pode ser gerado dessa abertura matricial que o meio semiótico eletrônico proporciona, com as possibilidades do que pode ser exibido de visual e sonoro em sinais eletrônicos, temos as possibilidades de mistura multiplicadas, e os meios digitais podem ser então compreendidos como “formato predestinado de figuração, em que os elementos do analógico e do digital codificaram a pictoralidade e podem ser visíveis em uma relação ambivalente”. A ambivalência que surge das imagens dos meios eletrônicos, as colocam então, “na categoria digital de imagens de simulação”.
Essa massa informacional configura então, a perda do referencial da origem da imagem e são nessas efígies mestiças que temos a produção de novas estéticas, pois essas linguagens desembocam em extraordinárias visões surreais que nos afastam e aproximam do corpo humano. Para Denis20, essas imagens transportam o espectador para um mundo que questiona e comunica imediatamente com a realidade, como por exemplo, Ruber Johnny de Chris Cunninghan, (2005), cujo corpo distorcido tão bem produzido gera a estranheza do contato extremo de surrealidade.
Agora o corpo possui diversas possibilidades, podendo tornar-se inteiramente digital por meio do motion capture como em As Aventuras de Tintim (2011), como também pode sofrer alterações em prol de uma estética diferente da naturalista cinematográfica, como em Sin City: Cidade do pecado (2005). A animação, transferida também para esse meio, oferece agora o ultrapassar das impossibilidades técnicas de fisicalidade, intermediando a relação entre os universos de referência, acarretando em corpos híbridos que nos impressionam e assustam com suas novas realidades.
2. Imagens mistas, linguagens hibridizadas: Os corpos dos atores miscigenados pela animação no cinema digital.
O cinema, mesmo em sua era analógica, já era uma linguagem híbrida (interdiscursiva). Oriundo do teatro, dos quadrinhos21 e da animação, as formas cinematográficas maturaram-se tendo as reminiscências de suas raízes ainda presentes de forma a constituir linguagens invisíveis, onde o cinema abaliza suas características e amplia seus recursos. O cinema digital trouxe a possibilidade de um descolamento da estética naturalista que caracterizou tão fortemente o filme, em prol de uma expansão nas possibilidades da imagem que fazem revelar essas linguagens basais confluentes.
A animação, de acordo com Manovich22, foi a gestante do cinema; suas experiências de estudo de emulação de movimento auxiliaram na compreensão desse evento físico que o cinematógrafo careceu e ambas caminharam compassadas até o amadurecimento do cinema, que fez com que se distanciassem, colocando o fotograma do lado do espectro indicial e a animação do lado da representação assumida, o da iconicidade. Dessa forma a fotografia diferiria das artes mais pictóricas pelo seu excesso de real, que restringiria a icônicidade23. É importante apenas salientar que o próprio Pierce apud Stjernfelt24, já explicou que de fato, todos os signos são misturas heterogêneas (ícone, índice e símbolo), tendo como características mais notórias, aquelas que irão denotar a classe na qual ele se insere.
O filme Sin City: Cidade do Pecado (Robert Rodrigues, 2005) exemplifica bem a colocação da computação gráfica como aliada de uma hibridização entre linguagens, utilizando-se da animação para colocar a estética de quadrinhos como força motriz do filme, em relação à estética naturalista. A película toda recebeu um tratamento para assemelhar-se com os quadrinhos de Frank Miller, transformando os corpos dos atores em desenhos pelo contraste e pelos tratamentos que receberam. O próprio Miller25 chega a constatar que em certo momento da produção, algo estranho começou a ocorrer. Segundo o mesmo, as pessoas começaram a se parecer com seus desenhos. Denser26 analisou o processo de transposição midiática do filme Sin City através de um exame de recortes de cenas. A autora pôde verificar a fidelidade do diretor à estética dos quadrinhos. Sobre sua experiência, Denser escreve:
Pode-se dizer que Sin City é desenho filmado, considerando a diagramação do quadrinho no enquadramento cinematográfico, movimentos de câmera e a articulação. [...] O Filme mantém o movimento das formas estáticas presentes no HQ reproduzindo a mesma dinâmica dos quadrinhos, porém sem perder o espaço naturalista do cinema. A produção e a finalização, feitas por computação gráfica, obedeceram à estética da graphic novel.27
As cenas, comparadas às páginas dos HQs, mostraram que as mesmas serviram de maneira comparável a um storyboard; os enquadramentos eram os mesmos, assim como os movimentos de câmera implícitos nos quadrinhos de Miller, a composição das figuras era respeitada da mesma maneira que o jogo de luzes. Isto levou a autora a considerar Sin City, “o primeiro filme transposto dos quadrinhos, a obedecer à estética do HQ”28. Para respeitar o arranjo e desenho dos cenários de Miller, os atores trabalharam com o Chroma Key, permitindo que, desta forma, os fundos fossem feitos com composição computacional.
Em algumas cenas de diálogo, como a de Nancy (Jessica Alba) e Marv (Mickey Rourke) no episódio, A Cidade do Pecado (Sin City (The Hard Goodbey)) em que supostamente eles estavam contracenando um com o outro, para um melhor trabalho de pós-produção em Marv, um dos personagens que mais requeria trabalho de transformação do corpo, os atores não chegaram nem a contracenar juntos. As cenas foram gravadas em separado com o diretor Robert Rodrigues a auxiliar na atuação, e rearranjadas na edição e com pós-produção.29
Os atores, além dos tratamentos gráficos e maquiagem para ficarem semelhantes aos desenhos de Miller, foram submetidos também um processo de “rotoscopia contrária”. A rotoscopia, em animação, configura-se por ser uma sequencia de imagens reais filmadas, projetadas quadro a quadro (com um projetor de slides) em uma chapa de vidro, permitindo o decalque para o papel ou acetato da parte da imagem que se deseja copiar, fazendo com que dessa forma, o animador imite fidedignamente o movimento real. No caso de Sin City, com o auxilio de computação gráfica, tentou-se calcular, baseado nos desenhos de Miller, como seus personagens, se fossem reais, se moveriam e os atores foram ensinados a movimentarem-se e a terem trejeitos gestuais similares aos personagens de Miller.30
Todo este elaborado trabalho fez de Sin City um experimento, uma modificação da linguagem naturalista cinematográfica através de uma verdadeira amalgamação, não apenas entre quadrinhos e cinema, como também de animação. Este filme trouxe um desenvolvimento de uma linguagem inovadora no sentido estético provido pelo meio digital, invertendo as relações que temos com os corpos nesse tipo de transposição midiática. Em Sin City, quem imperava eram os desenhos inanimados e não os corpos reias dos atores. Dentro das elocuções fílmicas ele tornou- se um “paradigma do gênero, por se tratar de um filme feito nos parâmetros da estética do cinema e da estética gráfica”.31
Esse é um exemplo emblemático de como a hibridização dos corpos pode desembocar em uma mudança de estética fílmica, mas os adventos que a computação gráfica trouxe também incidiram sobre a produção de animação que pode agora contar com a total transformação do corpo em dado numérico.
Em As Aventuras de Tintim dirigido por Steven Spielberg (2011), por meio do captura de movimento (motion capture), que permite o mapeamento de movimentos e posterior transferência destes dados para modelos 3D, podendo servir tanto para áreas de dança, teatro, medicina e esporte, e no caso em específico, da captura de performance (match moving)32, com o registro de todas as sutilezas das expressões faciais dos atores, os corpos foram substituídos, desembocando, assim, na imaterialidade corpórea que permitiu aos atores serem transpostos para o universo de Hergé. Os atores trabalharam todas as cenas sem interação com cenários finais, utilizando apenas objetos semelhantes que não atrapalhassem a captação do software. Alguns objetos foram utilizados para a captação perfeita do movimento dos atores em determinada situação, como por exemplo, quando os personagens encontram-se sobre uma superfície aquosa (do mar) e destarte, não possuem estabilidade de superfície. Os softwares 3D já podem, desde 1999, com Formiguinaz33, da Dreamworks Animation, emular o movimento da água, mas, ainda não conseguem com perfeição, emular os movimentos humanos na água.
Os movimentos de câmera também foram capturados para que a “câmera virtual” pudesse realizar pans, tilts, ou dollys ao redor do cenário físico. Enquanto o ator estava realizando sua performance virtual, o sistema de captura de movimento pôde capturar a câmera real e a interação com os acessórios, concomitantemente como o desempenho do ator. Isso permitiu aos personagens gerados por computador, em conjunção com as imagens produzidas, uma coerência perspéctica.
Seus avatares, modelados digitalmente, simulavam um misto de figura humana com o design dos personagens do HQ de Hergé, pois a intenção da captura de performance não é registrar as características físicas dos atores, mas sim seus movimentos. O filme nos apresenta um empréstimo de vida, pois a intenção era utilizar-se da atuação, impregnando os modelos 3D com a existência dos corpos dos atores. Dessa forma, o filme diverge da animação, pois a mesma implica em criação de movimento34, e não capturar do mesmo; a apreensão desse, relaciona-se exclusivamente com o cinema, o que, nos leva a concluir que, As Aventuras de Tintim, é ainda mais hibridizado, não apenas no que dirige-se aos corpos na tela, mas do filme como um todo, que borra as fronteiras do que é cinema e do que é animação.
O filme de Spielberg tem a performance como âmago; o ser humano que trabalha na peça, ainda precisa de direção artística e pode propiciar expressividade por meio de suas ações físicas cinéticas; eles ainda contracenam entre si, porém sem a transformação transpassada pela vestimenta dos figurinos ou a presença nos grandes cenários, já que isso se transferiu para a construção digital. O corpo se torna possibilidade, e o digital apresenta diversas roupagens para esse corpo.
Portanto, o que o cinema digital fez, foi intermediar aspectos realistas às possibilidades de representação características da animação, que nessa combinação, abre as portas de feições mais irreais e oníricas do mundo psíquico do cineasta, fazendo do corpo físico um ponto inicial de construção artística e não uma composição final na produção. Os corpos cinemáticos no cinema digital, não são apenas vídeo (transposição de dados para o digital), pois isso não abraça toda a gama que envolve a questão; aqui a animação é injetada nos corpos, formando outro tipo de linguagem que se encontra “em uma zona entre a videografia e a animação”35. E com isso as imagens se expandem, mostrando facetas mais abstratas dentro da visão de realidade, dando aos corpos uma maior possibilidade de expressividade visual.


Considerações Finais
O cinema digital trouxe diversas discussões sobre estética fílmica, possibilidades criativas, descolamento do cinema de seu lugar midiático, etc. Como apontou Wyatt36 :“Novos paradigmas sempre foram acompanhados de novas estéticas. O cinema digital representa um aspecto emergente da estética da era da informação”.
Como uma bandeira dessas novas possibilidades, o cinema digital não retira de seu lugar, o fazer humano, que tanto constrói essas tecnologias, quanto produz objetos através dela. Quando abordamos a temática de transferência de meios artísticos analógicos para digitais, a questão das substituições permeia todos os ambientes de desenvolvimento artísticos da nova “era assembly”, mas isso não exime, por exemplo, um ator de performar adequadamente, ou um grupo de dança de expressar-se ativamente por meio de seus corpos. Não podemos esquecer que os cálculos que imitam nossa realidade em um ambiente virtual foram feitos por outras mãos humanas, que se serviram de conhecimentos apreendidos da realidade empírica. As relações maquínicas que surgem com o desenvolvimento digital, não são excludentes do trabalho humano, apenas o expande e desloca em outras direções.
Essas hibridizações são produzidas - como não haveria de ser de outra forma - por seres sociais que somos, engendrados por uma atmosfera cultural, influenciados e influenciadores de tecnologia e cultura. E essas agitações no espaço semiótico cultural sempre geram novas linguagens, que acredita-se, foi o que ocorreu no cinema digital com as possibilidades técnicas.
Talvez o espectador ideal, aquele que não possui conhecimento intrínseco sobre técnicas de produção, estética ou outras matérias que gravitam o ambiente cinematográfico, não perceba com profundidade as mudanças semióticas que incidem sobre as variações técnicas entre cinema e animação, entre o corpo indexial e o corpo híbrido. Mas elas sobrevêm diretamente sobre a percepção, e isso leva ao questionamento mais ilustre do cinema sobre produção da imagem, que é feito agora, de forma muito mais penetrante e esmaecida. Quando compreendemos as questões que o índice fotográfico nos revela, ao ser diretamente relacionado com a realidade, e sua então mimese, na animação hiperrealista, podemos compreender melhor as novas reações que se têm sob a presença desses corpos híbridos. Quando olhamos para uma fotografia ou uma filmagem nossa, sem manipulação, não dizemos que são representações fotoquímicas ou de registro de movimento por aparatos de captação digital. Dizemos: esse sou eu. Ou seja, sublimamos nossos corpos para uma figuração, para um simulacro, já que esses aparatos também são ilusão; o cinema é a emulação do imóvel (fotograma) para fazê-lo parecer móvel. Ao miscigenarmos essas relações de representação do corpo, incontestavelmente temos reações diferentes.
Esse espectador ainda irá deslumbrar-se, como sempre nos deslumbramos de acordo com nossas épocas, com os efeitos perceptórios que obras audiovisuais - que estimulam de tamanha forma os sentidos – nos fazem deslumbrar, todavia, agora, de maneira mais fronteiriça, sem ter mais absoluta certeza do que é real e o que é irreal, o que é cinema e o que é animação, ou o quanto de manipulação aquele corpo sofreu.
Isso gera novos questionamentos que são parte integrante de uma evolução na história das artes cinemáticas, que por sua vez é um fragmento desse sistema vivo e pulsante que é teia de construções culturais. A real questão que deve considerar-se quando abordamos a temática da exposição a essas novas imagens, em concordância com Wyatt37, sai do âmbito de como elas são produzidas: o centro do novo ambiente causado por essas imagem recai sobre “o porque delas serem feitas e que tipo de imagens são criadas.”
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As Aventuras de Tintim. 2011. De Steven Spielberg. Estados Unidos: Sony Pictures Entertainment e Paramount Pictures. DVD.
Notas finais
1(Denis 2011, pag. 7/8 nota de rodapé)
2(Doane, 2001)
3(Denis, 2011)
4O filme Premonição 5 é um bom demonstrativo da utilização de matte painting para compor as cenas. Disponível em : http://www.youtube.com/watch?v=OZcEGXEkHjo. Acesso em 28 de out de 2012).
5(Doane, 2001)
6(Denis, 2011)
7(Doane 2001, 172)
8(Doane 2001, 102)
9(Doane 2000, 103)
10Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013
11Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013.
12Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013. Tradução nossa: consist of unmodified photographic recordings of real events which took place in real physical space.
13Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013.
14Manovich. Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013
15Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013.
16(Haugeland 1981, 34).
17(Wyatt 1999, 369)
18(Spielmann 2008, 06)
19(Spielmann 2008, 10)
20(Denis 2011, 30)
21A tentativa de reproduzir uma hq de Herman Vogel publicada em 1887 na revista Quantin através das lentes do cinematógrafo, pelos os irmãos Lumière, acarretou em transformações drásticas, em relação a serventia do novo aparato. Acredita-se que essa experiência, proporcionou o vislumbre das possibilidades narrativas da máquina dos Lumière. (Andrade e Toledo 2007, 2).
22Disponível em: < http://www.manovich.net/TEXT/digital-cinema.html >. Acesso em: 21 de out de 2013.
23(Doane 2001)
24(Stjernfelt 2011)
25Fala de Miller no making off de Sin City. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=36xJWDY4z6o>. Acesso em: 02 de jan de 2014.
26(Denser 2008)
27(Denser 2008, 126)
28(Denser 2008, 126)
29(Rodriguez e Miller 2006)
30(Denser 2008; 158)
31(Denser 2008; 160)
32Disponível em: < http://www.mocap.lt/motion-capture-services/face-motion-capture.html>. Acesso em: 12 de jul de 2013.
333D World Magazine. Disponível em: http://www.3dworldmag.com/category/magazine/. Acesso em: 18 de jul. 2013. Matéria: Go with the Flow, Setembro de 2010, pag. 46 à 51.
34(Denis 2011)
35(Wyatt 1999, 371)
36(Wyatt 1999, 367)
37( Wyatt 1999, 371)

Eduardo Messias
Formado em Desenho industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2008, atua como gerente de projetos deste 2012, tendo trabalhado como animador, editor, pesquisador e desenvolvedor de novas tecnologias com interatividade anteriormente. Seguiu a formação acadêmica no curso de especialização em Cinema, Fotografia e vídeo em multimeios concluído em 2012, pela Universidade Anhembi Morumbi.

Patrícia Campinas
Formada em Desenho Industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2007, atua como ilustradora, concept artist e chacarter designer desde 2010, tendo trabalhado anteriormente como ilustradora editorial e assistente de arte. A formação acadêmica teve seguimento com o curso de especialização concluído em 2010, pela UNESP em Fundamentos da Cultura e das Artes, e com o mestrado, iniciado em 2013 na ECA-USP, no programa de pós graduação em Meios e Processos Audiovisuais, tendo atuado como docente convidada no Senac em 2012 e 2013.