
UM DIA COM O CINEMA
por
Vítor Reia-Baptista
Entrevista realizada por Vítor Reia-Baptista (Universidade do Algarve) no âmbito da 4ª Mostra de Cultura Fílmica, organizada pelos alunos da disciplina de Cultura Fílmica da Universidade do Algarve, com o tema «Um dia com o Cinema», no âmbito da iniciativa nacional do GMCS «Um dia com os Media».
António-Pedro de Vasconcelos, cineasta, elemento, desde a primeira hora do Novo Cinema português, que surge nos anos 60, criador, entre outros, com o já saudoso Fernando Lopes, do Centro Português de Cinema.

VR-B: As Universidades devem fazer investigação, devem experimentar, devem testar novas coisas. Em termos de cinema, para que serve a investigação?
APV: Eu acho que isso é a função, pelo menos é uma das funções essências de uma Universidade. Não é só transmitir conhecimento mas também pôr as pessoas a pensar, reflectir, investigar. No plano do cinema, como em todos os planos, acho que isso é absolutamente essencial. Mas que tipo de investigação? Por um lado, penso que é preciso fazer perceber às pessoas que o que se faz no campo de cinema, como na literatura, pintura, ou em quaisquer actividades artísticas, não é uma actividade isolada. Uma cultura isolada é uma cultura morta. Ou seja, as grandes culturas são as que mais absorvem outras culturas e as que mais irradiam para outras culturas. Uma grande cultura é, antes de mais, uma cultura que tem capacidade de absorver as outras. E depois transformar e criar coisas novas a partir daí. Portanto, nesse sentido Portugal está, duplamente inserido, por um lado, no Universo Lusófono e, por outro, no Universo, digamos, da cultura ocidental. E portanto, é preciso que essa investigação tente perceber qual é o papel do cinema, no caso do cinema Português, neste duplo contexto. Por outro lado, qual é o nosso papel também no contexto da ficção, que hoje em dia não se esgota no cinema. O papel que a televisão e os novos media tiveram, digamos, no desenvolvimento de novas formas, não só de novos suportes mas também de novas formas de contar histórias. Nomeadamente através das séries de televisão, etc. E muitas outras coisas começam a aparecer, espontaneamente, na net, e portanto, tudo isso também tem que ser investigado. Por outro lado, eu acho que, em relação ao cinema Português, era preciso fazer investigação para perceber que papel tem hoje na sociedade. E também que papel tem hoje neste duplo contexto, Lusófono e Europeu. No meu entender, é muito fraco, é quase inexistente na sociedade portuguesa. Nós tocamos menos de 1% de espectadores, ao contrário da média Europeia que anda entre os 20% e 23%. Portanto, o cinema Português não diz nada às pessoas em geral e isso é um problema que tem que ser estudado, investigado; perceber porquê? E por outro lado, no Universo Lusófono também não representamos nada, não somos vistos no Brasil nem nos PALOP. No Universo Europeu, temos uns nichos de prestígio mas também não representamos nada em relação à cultura cinematográfica Europeia. Temos que ser cruéis mas lúcidos. Há uma investigação a fazer. Porquê? Porque somos pequenos? Porque somos periféricos? Porque vivemos muito tempo em ditadura? Porquê? Que rastos ainda há da ditadura? Eu acho que há muitos!

VR-B: E se colocássemos aqui, uma pequena hipótese, em termos de hipótese apenas: a geração que deu corpo ao novo cinema Português, foi muito influenciada pela Nouvelle Vague e pelo cinema de Autor. Será que ainda perduram esses modelos no cinema português? Será que, de certo modo, ainda condicionam outras formas de fazer cinema até mesmo pelas pelas gerações mais novas?
APV: Isto que vou dizer é paradoxal. O 25 de Abril foi o momento mais exaltante da minha vida adulta. Todos nós aspirávamos à liberdade, liberdade não apenas como cineastas mas também como cidadãos. Mas, paradoxalmente, foi trágico que tivesse ocorrido em 1974. Porque 74/75 é o momento onde começa, inexoravelmente, o declino do cinema Europeu. Entre 1975 e 1985, o cinema Europeu perdeu dois terços dos seus espectadores. Até aí, os filmes Europeus não só circulavam na Europa como no mundo inteiro. O cinema Europeu teve um prestígio extraordinário entre 1945, a seguir à guerra, e sobretudo a partir da Nouvelle Vague (1959/1960) até 1975, portanto durante 15 anos. O cinema Alemão, Inglês, Italiano… mas não só Europeu. Outras cinematografias que apareceram como a Brasileira. Mesmo em alguns Países de Leste começaram a aparecer ténues movimentos na Checoslováquia, etc.. E portanto, foi de facto uma explosão absolutamente extraordinária entre os anos 60 e 70 e, subitamente, nós que tínhamos 65% de mercado e passámos para 20%. Em 10 anos perdemos tudo! Não há aqui espaço nem tempo para desenvolver uma análise sobre o que aconteceu. Tenho as minhas ideias e fiz bastantes estudos sobre isso, mas por exemplo, acho que isso é uma coisa que deveria ser analisada. A liberdade em Portugal coincide com esse clima, ou seja, com aquilo que foi a perversão da ideia do que era o Cinema de Autor. A partir de 1975, houve uma perversão do que era o Cinema de Autor. O cinema Europeu, de uma maneira geral, escolheu um caminho que foi primeiro um caminho de radicalização política, de 68 até 75,ou seja, um cinema ao serviço da militância política, um cinema anti-imperialista, anti-cinema Americano, um cinema de guerrilha e quando houve o colapso dos ideais da esquerda revolucionária, digamos assim, com a normalização da vida Francesa após o Maio de 68, com a morte de Che Guevara, com a morte de Mao Tsé-Tung, com o claro desprestígio da União Soviética, os cineastas ficaram órfãos dessa militância e transformaram a radicalização política numa radicalização estética. Portanto, a maioria significativa dos autores, os intérpretes do espírito da Nouvelle Vague, dos anos 60, com Godard à cabeça, fez uma inflexão que levou o cinema para caminhos, a meu ver, suicidários, e, a partir daí, o cinema Europeu passou a depender muito mais do Estado e portanto perdeu a sua independência, perdeu a sua vitalidade, perdeu a sua pertinência social, perdeu as suas relações com a sociedade… A Europa hoje em dia não se vê reflectida no cinema Europeu e Portugal muito menos, e portanto, para retomar o tema da investigação, eu acho que há todo um trabalho que está por fazer e tentar perceber o que nos levou a isso. Porque a minha geração, como a geração da Nouvelle Vague, o que queria era tomar o poder. Tal como o Rossellini quando começou a fazer filmes! Tomar o poder, não no sentido de mandar mas de ditar as regras, formar um novo gosto e ocupar o espaço. E era esse também o nosso sonho, quando éramos jovens, até à revolução, e mesmo naqueles últimos anos 60/70, quando começámos a fazer os primeiros filmes, muito condicionados pela censura, pelo clima político que se vivia: tomar o poder, ocupar o palco, … Isto é, falar às pessoas, interagir com a sociedade, mas como essa inflexão do cinema europeu coincide com meados dos anos 70, nós apanhamos já essa ressaca. 74, o fim da guerra do Vietname, foi o último momento dessa convulsão libertária.
VR-B: Será que podíamos tomar a morte de Pasolini como um momento simbólico?
APV: Acho que sim. Eu costumo dizer que há três mortes que correspondem ao fim do cinema europeu. A do Pasolini, primeiro, do Fassbinder e depois mais tarde do Truffaut, em 1984. A morte destes três cineastas foi prematura porque todos eles, mesmo se morreram por razões diferentes, ou seja, o Fassbinder por excesso, o Pasolini por uma vida de risco, porque procurou a sua própria morte, o Truffaut porque teve um tumor, mas qualquer deles desaparece claramente antes do tempo, tinham muito para dar. E quer Truffaut quer qualquer um destes três eram de facto a consciência crítica do cinema europeu, e por isso eu costumo dizer que estas três mortes estão profundamente ligadas ao declínio do cinema europeu.
Será que aprendemos alguma coisa, apesar de tudo, nestes dias em que se discute uma nova lei do cinema, na qual aparecem palavras de certo modo inovadoras, como promover a literacia fílmica, enfim, coisas com as quais todos nós concordamos em teoria, mas será que aprendemos alguma coisa para fazer reverter o modo concreto, alguma mudança?
Eu acho que não, mas eu sou outsider. Costumo dizer que sou um dissidente. Penso que aquilo que nós defendemos foi depois traído pela minha geração e pelas gerações seguintes. Portanto, eu acho que se deve promover a literacia do cinema. Mas se nós começámos por fazer filmes que não conseguimos fazer passar para o público (e nós temos um meio Poderosíssimo à nossa disposição!), mas se os próprios filmes não falam às pessoas, não podemos dizer eternamente que é o público que é ignaro, que é o público que não nos entende. Um escritor ainda pode escrever livros que, se calhar, só são descobertos uns anos depois, pode acontecer. Mas nas artes do espectáculo, sobretudo, o teatro, ópera, o cinema, a televisão, não podem ficar á espera que o público os descubra cinquenta anis depois, são produtos de consumo imediato, as pessoas ou vão, ou compram o bilhete ou não compram o bilhete. Mas criou-se uma confusão que serviu uma determinada linha ideológica completamente suicidária, que é a de que o cinema que tem público é relegado depreciativamente para a categoria do cinema comercial, e o cinema artístico (aquilo a que passaram chamar abusivamente “cinema de autor”!), não pode ser compreendido pelo público do seu tempo! Eu vou fazer uma citação que é brutal, mas, isto foi escrito por colegas meus, há uns três anos no “Público”. Escreveram uma carta ao Ministro da Cultura, a dizer que o Estado não podia abrir mão da escolha dos filmes que queria que se fizessem, ou seja, que os portugueses mereciam ver, para “libertar os realizadores do peso incómodo do público”! Isto está escrito!
Bom, portanto, é contraditório: como é que se pode fazer uma campanha pela literacia cinematográfica nas escolas, para ajudar os jovens a gostar de cinema e a ver cinema, quando depois se fazem em que os realizadores reclamam que “o Estado os liberte do peso incómodo do público”? Há aqui uma contradição insanável que é fatal ao cinema português. Não vejo maneira de sair disto, sinceramente, sou muito pessimista.
Digamos que nesse pessimismo a única nota positiva é de facto a de que há ainda muita matéria a investigar.
Há, e essa investigação tem de ser feita. Porque é que chegámos aqui, o que é que queremos do cinema, o que é que os filmes querem dizer às pessoas, porque é que os filmes são o que são? A partir do momento em que os filmes são subsidiados pelo Estado e escolhidos por um júri de pessoas cuja capacidade para representar o gosto dos portugueses e as necessidades dos portugueses, em matéria de consumo de ficção cinematográfica, é no mínimo duvidosa, essa reflexão está bloqueada. E porque é que o Estado declina essa função e a remete para cinco indivíduos, que escolhem por dez milhões? Por que razão é que é um professor da Universidade do Minho e não a minha porteira, quem decide do meu futuro como cineasta? Não aceito isso, da mesma maneira que não aceitaria que o Ministério da Cultura tivesse cinco indivíduos a dizer quem é que deve escrever livros e quem é que deve pintar ou quem é que deve fazer música! Para mim é um absurdo, e o cerne da questão está aí. O mais grave é que isso foi criado por Marcelo Caetano, em 71. Marcelo Caetano criou uma obrigação dos cinemas pagarem 15% dos preços dos bilhetes para serem investidos no cinema português (na altura a economia dos filmes fazia-se só nas salas), mas como era um regime fascista, em vez de ter criado uma obrigação de investirem directamente nos filmes, fez outra coisa: criou um Instituto (o IPC) onde havia um júri com cinco indivíduos que liam os guiões para decidir os filmes que podiam ser feitos! Para evitar que se fizessem filmes que desagradavam ao Regime e que depois tinham que ser proibidos. E isso ficou até hoje, com uma pequena diferença: em vez da “política do espírito”, que era, no fundo, uma censura política, passou a haver uma “política do gosto”, que é uma censura estética. Isto que é próprio das ditaduras, não é aceitável em democracia.

VR-B: E o 25 de Abril perpetuou isso...
APV: Perpetuou isso, porque coincidiu com essa fase em que os cineastas europeus escolheram cortar com o público… O que ninguém diz é que essa desconfiança no escrutínio do público traduz, no fundo, uma desconfiança na própria democracia: o público, entregue a si próprio, não sabe o que quer, não sabe escolher, não sabe o que lhe convém. O que aconteceu na Europa é que nós destruímos o mercado, o nosso próprio mercado (e, por tabela, o mercado mundial), e depois virámo-nos para o Estado a pedir para nos proteger, porque não tínhamos mercado! Faz-me lembrar a história daquele menino, com 12 anos, que matou os pais e depois foi pedir aos juízes que tivessem pena dele porque era orfãozinho! Foi o que nós fizemos. Hoje em dia, os cineastas são quase todos esquerdistas ou anarquistas, que acham que o Estado é um monstro, mas preferem o escrutínio do Estado ao escrutínio do público, quando aquilo que é a aspiração de todos os cineastas, de todos os grandes músicos dos que escreveram ópera, dos que fizeram teatro, era transmitir alguma coisa ao público, era ter o público a reagir positivamente e polemicamente aos filmes que eles faziam e isso foi o princípio da Nouvelle Vague. A Nouvelle Vague foi uma grande revolução por causa disso, porque foi ao encontro daquilo que eram os novos públicos e as aspirações das novas gerações. O cinema Francês não se via reflectido nos filmes que se faziam, as pessoas queriam outra coisa, e isso foi a grande revolução do Novo Cinema um pouco por todo o lado…
VR-B: Foi pouco compreendida, no início, essa posição da ocupação de novos espaços…
APV: Não, a Nouvelle Vague foi um fenómeno incrível, não quer dizer que apanhasse logo toda a população, mas o fenómeno da Nouvelle Vague foi nos primeiros anos como o do novo cinema alemão, etc… um fenómeno importantíssimo. Marcou sobretudo aqueles setores da sociedade que fazem a opinião.
VR-B: Mas era a esses que eu me referia…
APV: Foi de facto uma revolução brutal. Depois, com os anos, por razões várias, algumas das quais eu apontei, o que aconteceu foi que todo esse elã se perdeu, ou foi desvirtuado ,e o cinema perdeu toda a influência na sociedade.
É isso precisamente o que falta investigar…