
2009
Anabela Branco de Oliveira
A AMBULÂNCIA
Título original: HITNA POMOC
Título em inglês: THE AMBULANCE
de Goran Radovanovic
Sérvia, 2009, 81 min
Argumento, realização, produção: Goran Radovanovic
Direcção de fotografia: Radoslav Vladic
Montagem: Andrija Zafranovic
Musica: Aleksandar Sanja Ilic
Actores: Vesna Trivalic, Natasa Ninkovic, Nenad Jezdic, Sonja Kolacaric, Tanasije Uzunovic
Companhia produtora: NAMA FILM
A sequência inicial de The Ambulance (Goran Radovanovic 2009) projeta o forte caráter documental desta aventura ficcional. O Serviço Nacional de Ambulâncias protagoniza uma lúcida reflexão acerca das recentes profundas mudanças na sociedade sérvia. O universo da ambulância torna-se metáfora de mudança. Uma mudança no espaço e no tempo e um percurso identitário através de desencantos, paradoxos e indiferenças fraturantes, à procura de um sonho.
A ambulância, através do olhar sofrido e intraduzível de Vera e de Goran, percorre as manifestações e as revoltas contra Milosevic, está presente durante a queda do ditador, assiste às reivindicações perante os novos valores e é testemunha das exéquias do primeiro-ministro assassinado. Está presente nos momentos inevitáveis da morte.
The Ambulance define olhares de transição, esbate fronteiras entre documentário e ficção e é o espelho do inevitável desencanto após o fim dos totalitarismos.
Projeta o profundo desencanto de Simo Loncar que, fardado com o uniforme do antigo regime, frente ao símbolo de um socialismo perdido, transmite um olhar de sofrimento, de raiva e de mistério perante o presente que o atordoa. Simo Loncar aparece de olhar alucinado e desesperado nas manifestações contra o ditador, senta-se ao lado dos retratos dos novos senhores, aparece de joelhos e a arrastar-se, numa atitude de súplica, de desencanto e de completa desorientação, no meio das imagens captadas pelas câmaras durante os tumultos populares. Os grandes planos do rosto dele ao lado do autocarro incendiado definem o seu profundo desencanto e a fratura de um país que ele não compreende: um país que arde dentro dele. O serviço nacional de ambulâncias torna-se o suporte cognitivo quando ele apresenta dúvidas psíquicas e físicas relacionadas com um suicídio que deseja mas que não consegue concretizar. A ambulância não o satisfaz nessa demanda e também chega tarde ao campo de refugiados, não conseguindo evitar o suicídio de um outro desencantado.
Tatiana Loncar, a filha de Simo, é outra personagem do desencanto. Como apresentadora do jornal televisivo, ela projeta os ideais de Milosevic, ataca violentamente a presença da NATO na Sérvia e sofre, ao lado do filho, todo o processo depurativo após a queda do ditador. O rosto de Tatiana, muitas vezes em grande plano, torna-se outro símbolo do desencanto revolucionário. Enfrenta a morte do pai, tenta integrar o filho e tenta fugir ao fatalismo de uma palavra grafitada no recreio da escola –Alcatraz - cadeia mítica americana simbolizada numa Sérvia que ela não compreende e não aceita.

Ao lado deste desencanto, ao lado dos rostos desesperados, surge um rosto de um miúdo, vestido com uma camisola do Partisan de Belgrado, refugiado do Kosovo que, inserido numa montagem extremamente acutilante, engloba as imagens documentais de êxodos e bombardeamentos. O menino tem, nas sequências iniciais, um olhar enigmático e intraduzível. Chora serena e incessantemente… é o menino das lágrimas.
Perante o desencanto, a revolta, os tumultos, a guerra, os êxodos, o desespero, a proliferação dos campos de refugiados e as exéquias de uma promessa política, a ambulância projeta uma indiferença fraturante e quase inevitável. Quando Simo Loncar confessa a sua incapacidade para o suicídio e a sua urgência de conhecimento, os serviços de atendimento revelam uma indiferença total, projetando um intenso paradoxo, uma subversão do processo e do momento. No segundo telefonema, quando pede a quantidade conveniente de comprimidos para o suicídio, as respostas exatas e a banalização do atendimento são atrozes. A mesma indiferença atroz com que Vera e os colegas enfermeiros esperam que o utente morra, rodeado da família, para de seguida o transportarem. A mesma indiferença que faz com que Vera ignore Nada, nas escadas do prédio e na entrada do metro.
Existe a mesma atrocidade e a mesma indiferença na sequência em que a ambulância arranca para uma emergência, com a porta de trás aberta, deixando cair uma maca vazia. Na ambulância que arranca de portas abertas está a confusão da mudança e a procura desenfreada e sem limites de uma nova identidade.
A procura coletiva de uma identidade que se projeta na montagem paralela entre o presente ficcional e o passado documental de lutas, manifestações e desencantos; na renovação arquitetónica da cidade, num nítido movimento de limpeza e de reconstrução e na renovação total, ao nível espacial, organizacional e informático, do novo serviço nacional de ambulâncias.
Um processo de reconstrução de identidades que também se constrói num conjunto de contrastes: o contraste entre o desenho forense do potencial suicida Simo Loncar e o plano da criança, alegre, saltando à corda em cima dele; o contraste entre o desespero rastejante de Simo na sofreguidão das caixas de medicamentos e o olhar sereno de Nada na sua cadeira de rodas; o contraste entre a cumplicidade das crianças na dança do ovo e o esmagamento raivoso de um outro ovo cometido por Goran, de olhar misterioso e perdido.
É a procura desesperada de uma identidade, simbolizada num autógrafo, que move Tatiana Loncar: o autógrafo, repetido de uma forma psicótica, nas paredes da sua casa, assinado e oferecido, na morgue, perante o cadáver do pai, e pedido por Vera impedindo um suicídio planeado.

É a procura desesperante de uma identidade que sufoca o filho de Tatiana que não aceita os jogos de paz, sucumbe ao ciúme, desrespeita a identidade do outro e coloca, no grupo das roupas e das brincadeiras a arma ameaçadora dos equilíbrios e testemunha denunciadora de lágrimas feitas de raiva e desorientação.
The Ambulance é a presença de uma identidade que se quer reconstruir lentamente como os gestos excessivamente lentos da família que, no armazém, recebe a ajuda humanitária da Nações Unidas: um processo de sofrimento e de solidariedade, numa comunhão serena sem atropelos e sem pressas.
É a identidade serena do menino das lágrimas a rezar o Pai Nosso, a denunciar o milagre desejado, a orfandade e o exílio que a guerra lhe impôs. É uma identidade expressa no olhar intenso e enigmático do menino das lágrimas: uma identidade perdida simbolizada no barco insuflável em que dorme no campo de refugiados.
O mistério das lágrimas é o percurso de uma identidade expressa na montagem exímia entre o plano da chuva, o das lágrimas e o da água a cair na bacia. A identidade e a procura de um sonho. Será o menino das lágrimas o olhar de Goran Radovanovic?
No texto introdutor da edição em DVD, o realizador afirma “And there is also a dream in it.” Existe no filme, um sonho de mudança, num mesmo tempo e num mesmo espaço. Um sonho que parece não existir quando Nada tem consciência das suas limitações físicas mas que renasce quando ela fala da ligação inevitável e intrínseca que a une às duas janelas libertadoras: a da internet e a da casa, virada para o bulício da rua.
É o sonho de Vera que encontra em Nada, a companheira que a ajuda na sua modernização informática e na sua mudança pessoal: muda-lhe o olhar e o sorriso. Numa sequência de aprendizagem entre Nada e Vera, a tecnologia do email é substituída pela maravilha de um passeio em conjunto, o início de um jogo de cumplicidades.
É um sonho que parece não existir num chão pavimentado de quadrados brancos e pretos (um tabuleiro de xadrez onde se joga a vida e a morte) da morgue, revoltada e desencantada, de Tatiana mas que renasce num mesmo pavimento de quadrados brancos e pretos do Observatório de Belgrado onde Vera quer ver um asteroide com o nome de Sérvia e onde Nada sonha com o poder curativo das lágrimas do menino.
No percurso onírico do Observatório, o menino das lágrimas liberta-se do olhar triste e enigmático e sorri. Reencontra a sua identidade. Foi difícil mas conseguiu: foi bem mais fácil vestir a camisola de um outro clube! E as lágrimas curativas projetam-se, no travelling final, através da escada em obras, na construção de uma nova rampa para Nada.
O travelling pela escada e a presença da rampa é o percurso da construção de um novo país com jogos de novelos e fios que se cruzam num intenso multiculturalismo onde os momentos do conflito e do exílio se transformam numa identidade tranquila, sem os solavancos da câmara subjetiva de Nada e sem as ambulâncias do socorro e do urgente…

Anabela Branco de Oliveira
Doutorada em Literatura Comparada, orienta a sua pesquisa científica no âmbito dos estudos interartes, nomeadamente das relações dialógicas entre literatura e cinema. Pertence ao conselho editorial do International Journal of Cinema.